Na mobilização para prevenir e combater o suicídio na Caixa Econômica Federal e em outros ambientes bancários, no escopo das iniciativas pelo Setembro Amarelo, o portal da Fenae traz a segunda e última parte da entrevista com a psicóloga e pesquisadora Fernanda Souza Duarte, doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB). Dessa vez o conteúdo se refere, especificamente, à organização do trabalho e aos modelos de gestão aplicados cotidianamente no banco público e social.

Na Caixa, conforme atestada por pesquisa recente da Fenae, é cada vez mais nítido o nexo causal entre os métodos de gestão do banco e o adoecimento das empregadas e dos empregados, decorrência de metas desumanas, cobrança por resultados, assédio moral e sexual e sobrecarga de trabalho, aliadas a incertezas provocadas por reestruturações feitas sem o mínimo de planejamento. O fato, emblemático, é a prova cabal de que as condições de saúde dos trabalhadores do banco público têm piorado de 2018 em diante.

Fernanda Duarte assessora a Fenae na interpretação de dados de pesquisas e no processo de pensar políticas e ações nos termos dos sistemas de saúde mental relacionado ao trabalho. Confira a segunda e última parte da entrevista:
   
 
Como você analisa o resultado da recente pesquisa da Fenae sobre a saúde dos empregados da Caixa?

É terrível. Em comparação a resultados com anos anteriores, os números pioraram, com as pessoas declarando mais adoecimento. Elas estão buscando ajuda profissional individualmente, com psicólogos e psiquiatras. E o coletivo está bastante fragmentado. Constatamos que o cenário da pandemia fragmentou e, de certa forma, isolou mais as pessoas. Isso é fato. Então, os resultados são bastante alarmantes

Qual a relação do estado de saúde dos trabalhadores do banco com fatores do trabalho?


É preciso voltar para a questão da organização do trabalho como fator importante para entendermos a determinação social do trabalho, no adoecimento mental e no físico também. Se formos pensar na LER/Dort (Lesão por Esforço Repetitivo / Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho), por exemplo, essa é a relação. A organização do trabalho é muito importante para compreendermos toda essa realidade dramática, a questão das metas e de como o tempo é organizado em torno dessa produção, e não necessariamente em torno dos limites físicos e fisiológicos, assim como dos limites mentais das pessoas.

As pessoas se exaurem nesse trabalho e não só em relação à forma como ele está organizado, mas as tarefas, os tempos, os ritmos. Isso também registra um fator muito importante, que é como esse trabalho é gerido, como as pessoas se relacionam dentro dele. Percebemos ainda que o medo e a ameaça são constantemente invocados dentro desse ambiente de trabalho para manter o controle sobre as pessoas e, enfim, mantê-las submissas e produzindo a qualquer custo, inclusive às custas da própria saúde e infelizmente, às vezes, da própria vida.

É possível afirmar que o modelo de gestão da Caixa adoece os bancários?


Não se pode afirmar, e aí é uma questão epistemológica, que o trabalho causa ou algum fator específico acarreta adoecimento. As questões de saúde mental são multifatoriais. Então, há uma série de elementos que entram em interação. De forma epistemológica, baseada na compreensão das relações entre o trabalho e a saúde mental, a atividade profissional, muitas vezes, contribui para o desencadeamento de transtornos mentais, agravando os já existentes. É importante ressaltar isso. A legislação brasileira tem uma amplitude que cobre, de certa forma também, o agravamento de condições já existentes. Se o trabalho agrava, muitas vezes a doença pode ser equiparada a acidente de trabalho.

Quando chega no momento pericial, se questiona se a pessoa já tinha transtorno antes, muitas vezes para virar a situação contra essa pessoa, falando: “ah, ela já tinha um problema antes ou é um problema genético, não tinha como o trabalho ter causado isso!”. Isso é um equívoco profundo, o que mostra uma desinformação sobre a etiologia dos transtornos mentais e comportamentais. Existe, portanto, a interação de vários fatores. NR: etiologia é o ramo do conhecimento cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e origens de um determinado fenômeno. Na medicina, significa o estudo das causas das doenças. 

Então, o trabalho na Caixa tem sido um fator de adoecimento dos bancários. Na pesquisa, quando as pessoas foram perguntadas se adoeceram no último ano e se elas acreditavam que isso tinha relação com o trabalho, o número é mais alto do que o das pessoas que adoeceram e não acham que o problema tem relação com o trabalho. Isso é algo que já mostra como as pessoas têm compreendido o trabalho como um fator que tem trazido sofrimento para a vida delas. E sofrimento que se manifesta no corpo e na vida emocional, como adoecimento.

Fale um pouco sobre a ligação entre adoecimentos mentais e suicídio no âmbito da Caixa?

Se olharmos esses dados vamos ver que a tendência agora é de que a maioria dos afastamentos do trabalho bancário por motivo de saúde, seja por questões de adoecimento mental – essas são as doenças que mais têm se manifestado e aparecido com mais frequência. A maioria das pessoas que comete suicídio ou com alguma tentativa apresentava um quadro de transtorno mental. Se mais pessoas na residência do bancário estão apresentando transtornos mentais, logo teremos um risco aumentado também para o suicídio, principalmente porque os tipos de transtornos mentais surgidos encontram-se dentro de situações de humor e de ansiedade, transtornos que apresentam uma relação de maior risco para o suicídio.