2º CONCURSO DE LITERATURA DA FENAE – LETRAFENAE 2004

Menção honrosa na categoria Crônicas


Edison de Sousa Costa (Uberlândia/MG)

 

A ESTRANHA ARTE DE ESCREVER




- Pai, cê viu quem morreu?
Corro até a sala atendendo ao chamado da minha filha de quinze anos a tempo de assistir, no “Jornal Nacional”,ao fim da reportagem sobre a morte de Fernando Sabino. Era o último sobrevivente de uma leva de grandes cronistas que encantaram várias gerações. Lembro-me bem que, quando criança, não era raro a gente deparar-se com uma crônica de Sabino, Paulo Mendes Campos ou Rubem Braga ao desembrulhar o pão no café da manhã ou na vistoria minuciosa do par de sapatos que voltava do conserto enrolado numa folha de jornal. Na opinião de muitos Fernando Sabino era o mais talentoso desta turma, ao retratar o cotidiano embrutecido da grande cidade com rara poesia e humor incomparável. Ele sabia, melhor do que ninguém, que a crônica é a essência do efêmero, retrato instantâneo da vida ao rés do chão, como disse certa vez o crítico Antônio Cândido num prefácio primoroso a uma coletânea que inclui os três gigantes acima e que, para nossa sorte, torna-se perene ao migrar da página do jornal para o livro. Outro dia esbarrei com uma turma de escoteiros fazendo evoluções num parque perto da minha casa (sim, Fernando, até hoje ainda existem escoteiros) e quase tive um ataque de riso ao relembrar a definição lusitana transcrita em uma de suas crônicas: “o Escotismo vem a ser um bando de miúdos vestidos de parvos, comandados por um parvo vestido de miúdo.”
“A última crônica”, não a última a ser escrita mas aquela que leva este título, publicada nos anos setenta, é hoje um clássico da poesia em prosa. A história do casal que comemora o aniversário da filhinha de três anos num botequim da Gávea, espetando a velinha numa pequena fatia de bolo ressecado, adquire, na pena de Fernando Sabino, uma dimensão poética insuspeita em cena tão corriqueira, desmentindo o próprio cronista quando ele afirma não ser poeta e estar sem assunto. Entre suas inúmeras contribuições há ainda uma pérola, supostamente originada num provérbio soteropolitano, que define, sem meias-palavras, o tamanho ideal da carga horária de trabalho: “um emprego é tanto melhor quanto mais tempo você passa longe dele”.
Hoje em dia já não se consertam mais sapatos, meu caro Fernando, estragou vai para o lixo; o pão nosso de cada dia agora vem acondicionado em sacolinhas de plástico (polietileno, corrige o meu vizinho ecologista e aproveita para esclarecer que a dita sacola leva mais de cem anos para desaparecer). Pensando bem, talvez seja o material perfeito para transcrever as suas belas crônicas e assegurar diversão e boa leitura aos nossos tataranetos. A morte de um ídolo sempre acarreta um período de reflexão em todos nós e ao remexer em antigas anotações do tempo da faculdade de economia, período de grande felicidade, de muitas mudanças e aprendizado, do namoro com Mariana, bela morena do curso de Letras, acabei deparando-me com textos já esquecidos, folhas amareladas que eu julgava para sempre perdidas, histórias que fazem a vida da gente resumir-se a esta nossa estranha arte de escrever. Nessa época, eu e Mariana fazíamos parte de um pequeno grupo de cinco ou seis pessoas que orbitavam em torno do Professor João Valério e da Professora Maria Clara, coordenadores do curso de Letras e quem comandava as publicações no suplemento literário do Jornal do Diretório Central dos Estudantes. A maioria era do curso de Letras, como Marcos Vinícius, que a gente chamava de poetinha por ser meio xará de Vinícius de Morais; Zé Carlos, filho de pai fazendeiro que já publicara alguns artigos em sua cidade natal e Fernanda, amiga de Mariana, uma ruivinha de óculos fundo de garrafa e mau humor crônico, que nunca foi com a minha cara e não fazia a menor questão de esconder isso. Apenas eu e meu amigo Agostinho éramos do curso de Economia. Agostinho era o nosso filósofo de botequim e numa discussão acalorada sobre a conveniência da revolução, travada naturalmente em volta de uma mesa do bar perto da faculdade, refutou o argumento de seu antagonista com a frase que me traria muitos dissabores:
- Esse negócio de mudar o regime é besteira. O regime é bom, nós é que estamos do lado errado. A gente precisa é virar patrão.
Partindo desse conceito escrevi um longo texto enaltecendo as vantagens da livre iniciativa em contraponto aos problemas apresentados pelo centralismo estatal, que acabou sendo publicado no espaço destinado à crônica no Jornal do Diretório.
Aquilo caiu feito uma bomba. Para começar, um grupo capitaneado pela azeda Fernanda argumentou que aquilo não era crônica e, portanto, não deveria estar ali.
O professor João Valério saiu em minha defesa chamando a atenção para a dificuldade em estabelecer diferenças entre determinados gêneros literários e que o escritor, ao criar sua obra, não deve ter a preocupação de se encaixar num ou noutro. O próprio Fernando Sabino nos conta que Rubem Braga, cronista que supostamente nunca praticou outro gênero, escreveu alguns dos mais belos contos da língua portuguesa, até hoje tidos e lidos como crônicas. E depois de acalmar os ânimos o velho professor encerrou o assunto parodiando a célebre definição do conto cunhada por Mário de Andrade em tempos de Modernismo em alta: -“Crônica é tudo aquilo que chamamos de crônica”.
Hoje pode parecer besteira, mas num tempo e num ambiente em que Che Guevara era mais conhecido (e mais cultuado) do que Jesus Cristo, contrariar as idéias de esquerda era uma grande heresia. O pôster do guerrilheiro argentino com a frase famosa, que hoje mais parece propaganda de Viagra (Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás), era objeto de veneração pelos corredores e por todas as salas da faculdade. Fomos execrados durante algum tempo, eu e o Agostinho, porque apesar de eu não citar a fonte, algumas pessoas sabiam que tudo partira de um pensamento dele. Mas conseguimos dar a volta por cima e até arregimentar alguns militantes para o nosso lado.
Mesmo na nossa geração, que romantizava em excesso a utopia socialista, houve quem se decepcionasse prematuramente. E chega a ser surpreendente tamanha longevidade numa idéia que, em milênios, nunca se realizou, talvez a maior falácia da história da humanidade, que é a idéia de que algum dia o povo estará no poder. Usada para fomentar revoluções desde os tempos mais remotos (Moisés, ao ver ir por água abaixo seu plano de virar faraó, reuniu os hebreus acenando com a bandeira de sempre: a Terra Prometida, ao contrário do Egito, seria de todos), é incrível como uma idéia assim chegue com tanta força até os nossos dias.
Como na definição inglesa para as segundas núpcias, é o triunfo da esperança sobre a experiência, já que, concretamente, a história dos ajuntamentos humanos não nos permite ter ilusões: toda comunidade existe para atingir os objetivos de uma minoria. Sempre haverá uma elite, pequena e privilegiada casta de supostos iluminados a apontar os caminhos para a turba ignara.
Também ajudou bastante na minha reabilitação o fato de eu conseguir o primeiro lugar no gênero poesia do concurso literário da Universidade Federal, o grande acontecimento do ano para os aspirantes a escritores como nós. Feito ainda mais valorizado pelo fato inédito da premiação logo no primeiro ano, façanha que não foi repetida por ninguém durante todo o tempo que estive na faculdade.
Esta é outra história que merece ser contada.
Numa reunião que antecedeu o concurso literário, os professores queriam saber quem iria se inscrever e em que gênero. Como eu já tinha alguns trabalhos prontos, respondi de imediato:
-Vou participar apenas no conto.
Em seguida Marcos Vinícius também se manifestou:
-Poesia é a minha seara. Portanto, é aí que vou concorrer.
Os outros dividiram-se entre crônica e conto, já que o poeta da turma era mesmo o Marcos Vinícius.
Por essa época, a colega que morava com Mariana num apartamento próximo à faculdade foi visitar os parentes no interior e deixou o apartamento todo para nós durante o fim de semana. Tivemos nossa primeira noite juntos, maravilhosa, inesquecível, cheia de descobertas e a certeza de um amor para toda a eternidade, como normalmente acontece quando se tem vinte anos de idade.
Na semana seguinte, fuçando na biblioteca, deparei-me com um poema de um escritor gaúcho pouco conhecido, que parecia ter sido feito para aquela ocasião. Tinha um verso, “rios de gozo e sangue imemorial”,que dava a clara impressão de falar sobre a primeira noite de uma mulher. Não pude resistir: copiei o poema, mudei o título para “primeiros sonhos de amor” e, em outro encontro que tivemos, entreguei-o a Mariana, como se eu tivesse escrito aqueles versos para ela. A sua reação foi de puro deleite:
-Mas é tão lindo! São os versos mais maravilhosos que eu já vi. – Disse ela com os olhinhos cheios d’água.
Por sorte, seus beijos apaixonados impediram a minha resposta e fiquei feliz por não ter que inventar ainda mais mentiras sobre o poema.
A noite de premiação do concurso literário chegava finalmente, trazendo grande apreensão e expectativa por parte de todos nós. O auditório da faculdade estava lotado e um locutor especialmente contratado para a ocasião ia, aos poucos, anunciando as categorias e os premiados, desfazendo sonhos e nomeando os ungidos.
-E no gênero poesia – gritou ele com sua voz de barítono – o primeiro lugar é o trabalho entitulado “primeiros sonhos de amor”, de autoria de ... E gritou bem alto o meu nome. Mariana, que estava sentada ao meu lado, deu um grito e um pulo ao mesmo tempo.
-Ganhamos! Nós ganhamos! Nosso poema... em primeiro lugar! Eu te amo!
E me tascou um longo beijo em meio à total algazarra que se formou em torno de nós. Demorei a entender o que estava acontecendo e só então percebi que ela havia inscrito o poema no concurso sem me dizer nada.
O prêmio para o primeiro lugar era uma coleção dos maiores poetas da língua portuguesa, com dez volumes ricamente encadernados em capa dura azul e letras douradas, além da publicação do poema no jornal de maior circulação da cidade, o que acabou abrindo-me muitas portas em futuras incursões literárias.
Recebi o troféu das mãos da Professora Maria Clara, que não cabia em si de contentamento:
-Um poeta em meio à aridez dos economistas! Isso não é magnífico?
Peguei o microfone e, enquanto agradecia um tanto constrangido, não pude deixar de sentir um arrepio ao cruzar com o olhar rancoroso que Marcos Vinícius lançava em minha direção. Seu poema não recebeu nenhuma premiação e ele nunca me perdoou pelo fato de não ter lhe dito que iria concorrer no gênero que era a sua especialidade. Desnecessário dizer também que nenhum outro trabalho da nossa turma, inclusive o conto que eu lapidara por meses a fio, conseguiu sequer uma menção honrosa.
E foi assim que eu venci um concurso de poesias sem jamais ter escrito um único verso em toda a vida. Histórias de plágio nem sempre são engraçadas, mas os dois casos que relatei acima, um consentido e outro involuntário, têm um quê de pitoresco. Como diria Sabino, acontecem coisas estranhas neste nosso estranho ofício de escrever.
Durante algum tempo, toda vez que eu cruzava com a Professora Maria Clara era submetido a um interrogatório sobre meus novos trabalhos:
-E então, quando veremos um outro poema seu? – indagava ela, entusiasmada.
E eu sempre dava um jeito de enrolá-la:
-Em breve, professora. Estou trabalhando num poema épico, é mais demorado.
Ela saía balançando a cabeça, desconsolada:
-Eu não me conformo! Um poeta de alma tão sensível dedicar-se tão pouco à lira!
O namoro com Mariana durou pouco mais de um ano e, mesmo depois que nossas vidas seguiram por caminhos diferentes, não restou nenhuma mágoa. E se ela não arranjou um marido muito ciumento, é possível que guarde o poema até hoje, escondido numa caixinha de bombons junto a outras quinquilharias que evocam tempos mais felizes. As mulheres gostam dessas coisas.
Quanto a mim, cada vez que começo a ler um dos livros da coleção, tenho a impressão que Fernando Pessoa, Manuel Bandeira ou o grande João Cabral de Mello Neto estão a exigir, nas entrelinhas de seus belos versos, que eu entregue os dez volumes de capa azul e letras douradas ao seu verdadeiro dono: o obscuro trovador dos pampas, em última análise o legítimo vencedor do concurso literário.
O mais engraçado é que a confusão nunca foi descoberta e eu também nunca contei esta história a ninguém, exceto uma pessoa: o Agostinho, que quase rachou o umbigo de tanto rir, mas, ao que eu saiba, guardou o segredo.
Por falar nisso, em algumas coisas o tempo mostrou que a gente tinha razão, amigo Agostinho. Na arena ideológica, por exemplo, restou apenas um dos lados (o nosso) depois que arrebentaram o Muro de Berlim e implodiram o Leste Europeu, em tempos idos o paraíso perdido de Vermelhos de todas as plagas. A China Comunista, potência capitalista emergente, dos velhos tempos do Grande Timoneiro mantém apenas o nome do país e a idade mínima de oitenta anos para se chegar ao poder. No Caribe o Barbudo ainda resiste, mas já faz algum tempo que Cuba não é exemplo para quase nada. Por aqui a moçada que carregava a estrela do velho Guevara na boina preta de veludo também chegou à mesma conclusão que nós: o regime era bom, trataram de mudar de lado e hoje estão no poder.
A grande ironia, meu bom amigo, é que nada disso nos fez mais felizes.