DONA LUZIA  

Ana Amélia tinha oito anos quando foi à biblioteca do SESI pela primeira vez. Estava de férias e entediada. Naquela época, a sala clara que abrigava o pequeno acervo parecia-lhe enorme. E tinha um cheiro bom característico, que nunca lhe saiu da memória, mistura de pincel atômico com café fresquinho feito na copa ao lado.

Colada no quadrinho a fotografia três por quatro, a ficha estava pronta. Agora só faltava pegar o primeiro livro. Hesitou diante das prateleiras repletas e bem organizadas. Lombadas vermelhas, azuis, pretas e marrons, com inscrições em dourado, sucediam-se interminavelmente nos volumes grossos, austeros, cheirando a coisa velha. Sentiu-se perdida.

Dona Luzia olhou por sobre os óculos, entre severa e zombeteira, indicando-lhe, apenas com um movimento de cabeça, a estante dos livros infantis, à esquerda, num canto da sala.

A menina então sentiu-se mais à vontade com os exemplares de capas coloridas e irregulares. Folheou alguns aleatoriamente e, após uns vinte minutos, temendo que estivesse demorando demais a escolher, decidiu-se, sem muita certeza, por um livrinho fino e cheio de ilustrações divertidas: “As Espertezas do Jabuti”.

Encaminhou-se até o balcão da bibliotecária e ficou ali de pé, numa longa espera angustiosa, sem saber como chamá-la. Havia por toda a sala cartazes de cartolina verde- água, onde se lia “Silêncio”, e um homem de bigode e roupas brancas, calçando sem meias um sapato preto, lia o seu jornal em uma das mesinhas. Mais tarde soube que era o dentista do SESI.

Dona Luzia, que estava de costas, ocupada com o fichário, custou a dar por sua presença. Quando virou-se e a viu ali, tão a postos e pequena em seu vestido azul, vigiando seus movimentos, perguntou em voz alta e sem compaixão alguma:

- Tem muito tempo que está aí parada? Desembucha, criatura! E então, escolheu o livro?

Ana Amélia ficou sem jeito, sentiu o rosto quente. Simplesmente entregou-o a ela e ficou esperando, quieta.

- “As Espertezas do Jabuti”? É ... este é engraçadinho. Quantos dias você vai querer ficar com ele?

O inesperado da pergunta a fez responder ansiosa, sem pensar, achando que não devia demorar:

- Ah... uns dezesseis...

Dona Luzia explodiu numa gargalhada alta e assustadora. O rosto tornou-se vermelho e luzidio, os olhos querendo saltar das órbitas, toda a dentadura aparecendo, o buço meio escuro em contraste com os cabelos curtos pintados de acaju. O camisão florido. O homem do jornal olhou curioso e, em seguida, voltou à leitura. Tímida, a menina também ficou vermelha e sorriu sem graça, os lábios secos. Será que tinha pedido demais?

Percebendo a atrapalhação da pequena, Dona Luzia, ainda com ar de riso, tentou abrandar um pouco a voz:

- Minha filha, por mais lenta que você seja, não vai precisar de mais que três dias para ler esta historinha, um livrinho tão fininho. Nem o jabuti, tão vagaroso, gastaria dezesseis dias. Ainda mais esse, que é esperto. Vá lá, vou te dar uma semana, já que é leitora novata. Terça que vem, está bom assim?

Naquele dia, Ana Amélia foi embora quase correndo. Venceu os cinco quarteirões com fúria, sentindo-se ultrajada. A raiva por não ter reagido à altura na hora. Revia aquele rosto antipático gargalhando maquiavelicamente. Bruxa velha! Ela era grossa e ainda por cima a chamara de “minha filha”. Detestava que outras pessoas, que não o pai ou a mãe, a chamassem assim. Isso quase sempre significava que a pessoa já havia perdido a paciência com ela. Era humilhante.

Chegando em casa, atirou-se à cama e iniciou a leitura imediatamente. Aquela velha ia ver quem é que era lenta. Só parou para almoçar. Ao final da tarde, já tinha terminado. Foi cedinho à biblioteca no dia seguinte.

- Ora vejam, a meninota de novo! - Dona Luzia foi logo anunciando divertida.

- Vim devolver. Já li. - O livro estendido em atitude decidida, a expressão de triunfo. Queria ver a surpresa no rosto da velha. Mas para seu desapontamento, Dona Luzia não pareceu nem um pouco admirada com tamanha agilidade. Apenas disse, abrindo o livro na contracapa e apontando a anotação feita a tinta na ficha:

- Mas hoje ainda é dia cinco, minha filha, e nós marcamos a devolução para o dia onze, lembra? Se não me falha a memória, você até queria dezesseis dias...

- Pois é, – Atalhou Ana Amélia desafiante, percebendo a alfinetada da outra - mas eu já terminei e quero pegar outro livro.

- Acontece que eu só recebo na data marcada, meu bem. Antes, não. É pra isso que existe a data de devolução. Eu bem que lhe avisei que o prazo era muito longo. Se você me devolve antes, eu perco todo o controle, compreendeu? Eu sempre explico isso aos meus leitores, e eles acabam concordando comigo. Eu sou sozinha nesta biblioteca, pra fazer tudo. - A última frase foi dita em tom de indisfarçável orgulho.

Ana Amélia não acreditava no que estava ouvindo. Aquilo não fazia o menor sentido. Então ela não podia ler mais rápido que o esperado e liberar o exemplar para outras pessoas? Aquela devia ser a única biblioteca do mundo onde essa estranha regra vigorava, pensava. Pouco a pouco, porém, do alto dos seus oito anos, a intuição a fez concluir que não se tratava de pirraça da outra. Percebeu de repente, claramente, a limitação daquela mulher. Sentiu então um pouco de dó. Respirou fundo, decidida a não parecer decepcionada, pois não queria dar esse gosto a ela. Muito menos ia discutir. Seria tolice, pois, com toda a razão que pudesse ter, jamais a opinião de uma criança como ela prevaleceria sobre a de uma senhora que, com certeza, já passava dos sessenta. Era necessário paciência, tolerância. Então fez força para responder, educada:

- Tudo bem, Dona Luzia, eu não sabia. Não tem problema, eu volto na terça-feira.

E assim fez. Na terça-feira, dia onze, voltou lá pela manhã.

- Agora sim. - Aprovou a bibliotecária com aquele sorriso benevolente, de quem se julga dona da verdade. - Chegou o dia, hein? Muito bem, vai levar outro? Precisando de alguma sugestão...

A menina correu para a estante. Já mais ambientada, esqueceu-se da vida ao explorar o mundo mágico dos livros infantis. Não se importava mais com o tempo despendido na escolha. Abria um a um, folheava, lia os comentários nas orelhas. Pegou dessa vez um mais grossinho, tendo o cuidado de pedir só três dias.

- Isso mesmo - disse Dona Luzia, senhora da situação - Se não for suficiente, é só você voltar aqui no dia marcado e pedir a prorrogação do prazo. Claro, se não houver reserva para esse livro.

Foi assim que, naquelas férias, e também depois que as aulas voltaram, Ana Amélia leu praticamente todos os livros infantis da estante. Devorava dois ou três por semana. Devolvia sempre pontualmente no dia marcado na ficha, como Dona Luzia gostava. Passou a ser a leitora mais assídua da biblioteca do SESI. Sempre educada, de poucas palavras e séria. Acabou conquistando Dona Luzia. A mulher, desarmada, já não implicava mais com ela. Pelo contrário, elogiava a sua disposição para a leitura, a sua pontualidade na devolução, o fato de não incomodar os outros leitores. Tratava-a com camaradagem e até com uma certa intimidade, fruto da freqüência com que se viam.

Ficou sabendo, com o tempo, que a velha senhora tinha fama de chata e rabugenta. Não sem razão. A menina presenciou muitas vezes a visita de outros freqüentadores da biblioteca. Dona Luzia, sadicamente, fazia perguntas com armadilhas aos mais humildes, para pegá-los mais à frente. Falava sempre em tom mais alto e irônico, chamava-lhes a atenção por coisas sem importância, de forma que não raro saíam com raiva ou constrangidos. Depois que se iam, ria-se muito, vermelha, o cabelo vermelho, ar de troça, e comentava com os que permaneciam, geralmente Ana Amélia e o dentista:

- Comigo é assim! Pensa que eu sou boba?

Sentia-se a dona da biblioteca. Era o seu reino. Ali imperava absoluta.

Quando Ana Amélia tinha nove anos, Dona Luzia avisou-lhe que estava aberto um concurso de composição entre os leitores, até doze anos, das bibliotecas das várias unidades do SESI. O tema era o “Sesquicentenário da Independência do Brasil”, naquele ano de 1972. Fazia questão de que ela participasse.

Ana Amélia tirou o segundo lugar, e Dona Luzia contava a todos, satisfeita, de uma forma que encabulava a menina. Orgulhava-se pelo fato de que um leitor de sua biblioteca houvesse ficado entre os primeiros. Ana Amélia teve que ler seu trabalho no auditório, lá na frente. Jamais pôde esquecer o constrangimento que sentiu ao voltar do palco em meio ao silêncio da platéia. As palmas já tinham cessado e não mais abafavam os seus passos. Então ouvia-se nitidamente o barulho incômodo e inevitável que seus sapatos brancos faziam no assoalho, até finalmente chegar à sua cadeira. Ela pensava que todos ali a achavam uma metida.

Saiu de lá na companhia do pai, levando seu prêmio: “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, e “Histórias do Fundo do Mar”, de Lúcia Machado de Almeida. Foi assim que Ana Amélia, deliciada, leu toda a obra de Monteiro Lobato, rindo-se das trapalhadas da Emília. Houve uma fase em que chorava, lendo as lacrimosas histórias de José Mauro de Vasconcelos.

A partir da quarta série, passou também a fazer suas pesquisas escolares no SESI. Não tinha enciclopédias em casa, e rara era a semana em que não havia algum trabalho pra fazer. Passava muitas tardes naquela pesada e enorme mesa de uso comum, tampo verde-claro, sempre sentada no mesmo lugar, cercada de livros.

Dona Luzia ajudava a localizar o assunto, oferecia alternativas, tinha boa vontade. Dizia que na biblioteca tinha de tudo, era só saber procurar. Depois de visitar um dia a Biblioteca Pública, Ana Amélia descobriu que o acervo do SESI era muito limitado, alguns livros desatualizados, mas não retrucava. Era bom ver Dona Luzia feliz. Não havia motivo para contrariá-la.

Certa vez, levou uma colega de escola para fazerem um trabalho juntas. A amiga, na saída, perguntou como é que ela suportava Dona Luzia. Como aquela mulher podia ser assim tão chata e arrogante! As pessoas não sabiam como lidar com ela, pensava Ana Amélia. Quem a conhecia há mais tempo, percebia que no fundo não era má pessoa.

Quando Ana Amélia completou treze anos, Dona Luzia levou-a a uma determinada estante e disse:

- Já está na hora de você ler os livros da “Biblioteca das Moças”. Este de M. Delly , “Foi o Destino”, é muito bom. Acho que você vai gostar.

A menina olhou para aquele volume grosso, de páginas amareladas e letras pequenas, com gravura só na capa, e achou que não ia dar conta. Não só deu como não descansou até ler todos os livros da coleção. A partir daquele momento, freqüentou castelos e lindas mansões antigas, usou vestidos maravilhosos, conheceu vilas pitorescas e bucólicas, montou elegantes cavalos e apaixonou-se perdidamente, mas com todo o recato de uma boa moça, por aqueles belos homens que a faziam corar a todo instante. Foi apresentada também a Agatha Christie, cujos livros despertaram nela um espírito lógico e investigativo. Lia compulsivamente, não conseguia parar.

Num doze de março, Ana Amélia levou uma rosa amarela a Dona Luzia. Entregou-a singelamente com um abraço e disse que era pelo Dia da Bibliotecária. Pela primeira vez, a velha emocionou-se diante dela. Mas disfarçou rápido e arrumou a flor numa pequena jarra de vidro que tinha em sua mesa. Mostrava-a aos que entravam, dizendo ser a primeira homenagem que recebia de um leitor em quase trinta anos de serviço.

Uma tarde, Ana Amélia, curiosa, perguntou a Dona Luzia se ela era casada.

- Sou viúva, meu bem. – Foi a resposta lacônica.

A menina encarou-a um pouco penalizada.

- Mas não precisa ficar com dó, não. Meu casamento não foi dos melhores, meu marido bebia muito. Quando ele morreu foi até um alívio. A única felicidade que me deu foi um filho, que Deus me tirou quando tinha mais ou menos a sua idade. Deve ter lá as suas razões, não é?

Mudou de assunto, forçou uma de suas gargalhadas, mas Ana Amélia viu quando enfiou os dedos sob os óculos e enxugou, furtiva, uma ou duas lágrimas. Não se falou mais nisso. Da vida pessoal de Dona Luzia, Ana Amélia soube ainda que ela morava numa quitinete do conjunto JK, sozinha. E quem a ouvisse comentar sobre sua casa, pensava tratar-se de um condomínio de luxo, tal era o valor que lhe dava. Ninguém se atrevia a contradizê-la.

No início da oitava série, após voltar de uma viagem de férias ao interior de Minas, Ana Amélia resolveu dar uma passada na biblioteca. O hábito de leitura estava arraigado. Sentia falta.

Ao entrar, apesar do mesmo cheiro bom de pincel atômico e café, sentiu que havia algo estranho. Algumas estantes tinham mudado de lugar. A sala ganhara um aspecto diferente. Sentada à mesa de Dona Luzia, uma moça mulata, alta e magra, bonita, que ao vê-la entrando disse, gentil:

- Pois não! Deseja alguma coisa?

- Cadê Dona Luzia? – Ana Amélia procurava, olhando para os lados.

- Você não soube? Ela se aposentou no final do ano. Fizeram até uma festa de despedida. Eu fiquei no lugar dela.

A menina permaneceu estática por algum tempo, incrédula. Sentia-se enganada. Por que ninguém lhe contara nada? A leitora mais assídua...

- Você já tem ficha, veio pegar livro?

- Sim. – Articulou ainda sem entender bem. – Mas como foi isso, de uma hora pra outra?

- Dona Luzia já tinha mais de trinta anos de serviço, estava cansada. Aposentou-se no tempo certo.

Ana Amélia ficou imaginando a velha senhora dentro de seu apartamento no JK, o sorriso irônico, o vestido florido. Cuidando de plantas, talvez. Certamente definharia aos poucos sem o seu reino.

Enfim, lembrou-se que tinha que escolher o livro.

A nova bibliotecária, solícita, ofereceu-lhe ajuda:

- Tem uma obra aqui que eu sempre recomendo. Adoro Morris West, você já leu alguma coisa dele? – E, dirigindo-se a uma das estantes, pegou um volume: “As Sandálias do Pescador”.

Perguntou-lhe o nome e dirigiu-se ao fichário.

- Olha, tem um bilhete aqui pra você, junto com sua ficha.

Ana Amélia pegou o papel dobradinho, abriu-o devagar e reconheceu a letra grande e caprichada de Dona Luzia: “Ana Amélia, você foi minha leitora mais querida. Isso fica só entre nós duas, está bem? Os outros leitores podem ficar enciumados. Obrigada por aturar esta velha ranzinza. Que Deus te ilumine pela vida toda. Luzia.”

A nova bibliotecária estava aguardando, distraída. Ana Amélia resolveu aceitar a sua sugestão.

- O enredo é muito bom, apaixonante.Vou marcar oito dias na ficha, mas acho que você vai me devolver antes disso.

Sim, realmente tudo estava mudado. A menina sentiu lá no fundo uma pequena revolta, como se a alteração daquela regra fosse quase um desrespeito a Dona Luzia. Mas não disse nada. Afinal, ela era apenas uma adolescente de quinze anos. E foi assim que Ana Amélia leu toda a obra de Morris West.

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