Decidimos
então que o remédio era já deixar a porta da sala
destrancada. Pelo menos durante o dia. Assim evitávamos as corridas
para atender à campainha insistente que tocava a toda hora, ou
às batidas fortes que ecoavam por todo o prédio, incomodando
os vizinhos.
Quando
menos se esperava, lá vinha ele, sem nenhuma cerimônia.
Apenas girava a maçaneta e entrava, naturalmente, como se morasse
ali. Os pés descalços e imundos, as pernas muito brancas
picadas por pernilongos, joelhos escalavrados, a camiseta de malha surrada
e aqueles olhos de um azul inigualável, contrastando com os negros
cabelos. Pelo menos, dignava-se a perguntar, sempre sério:
- O Rique taí?
Ao que respondíamos, muitas vezes nos recompondo às pressas,
pois costumávamos ver televisão mais à vontade
no sofá:
- Tá lá dentro, Quico. Pode ir lá.
Corria feito um risco pro quarto do meu filho.
Essa
falta de privacidade dentro de minha própria casa me incomodava.
- Que impertinência! Será que esse menino não desconfia?
A mãe não dá educação?
- É criança, Telma, não seja tão rigorosa...
Aos quatro, cinco anos, não se tem ainda esse discernimento -
meu marido me fez compreender.
Achava
era graça agora. Pensando bem, fora a cotidiana invasão
domiciliar, quase não dava trabalho. Essa era a vantagem. Não
havia que fazer sala, cara boa, inventar assunto, preparar lanche especial
para aquela criatura. O que vinha, aceitava de bom grado. Se não
viesse nada, estava tudo certo. Frequentemente ficava para o almoço
ou para o lanche da tarde, sem se fazer de rogado. Comia de tudo, sem
constrangimentos, derramando na mesa e no chão metade da comida.
Olhava já irritada, pensando que a limpeza sobraria para mim,
e ele nem ia agradecer, muito menos se desculpar por isso.
Seu
real interesse era tão-somente estar com o Henrique. Uns três
anos mais velho, não compreendia como meu filho podia tolerar
o pequeno, que nem ao menos sabia falar direito ainda. Mas, incrivelmente,
davam-se muito bem. Henrique tinha de sobra o que faltava em mim: paciência,
espírito aberto e generoso. Jogavam bola na garagem, brincavam
de luta, autorama, trocavam figurinha, um boneco por outro, uma miniatura
de moto por uma revistinha, e coisas assim. Nunca brigavam. Gostava
de observá-los juntos. Entre si dispensavam rodeios, formalidades
ou falsos sorrisos. Ao se encontrarem, nem se cumprimentavam. Para quê?
Um dos dois já fazia logo uma proposta qualquer, como andar de
bicicleta, ou exibia a figurinha do jogador que faltava para completar
seu álbum. Palavras, o mínimo necessário. Se acontecia
de meu filho não querer ou poder brincar, apenas dizia a Quico
que voltasse outra hora. Simples assim.
Zizi,
minha empregada, também conseguiu atrair sua simpatia. Sem o
menor esforço. Era jeitosa com crianças, adentrava fácil
o mundo da fantasia, tinha bom humor e uma voz fina que, imagino, agradava.
Num sábado em que deixáramos a porta trancada, William
foi atender à campainha, e era ele, no seu short azul-marinho:
- O Rique taí?
- Não, Quico. O Henrique tá no futebol.
- E a Zizi?
- A Zizi tá. Quer falar com ela?
- Não.
E foi-se, aquela coisa pequena e suja. Henrique e Lorena, durante muito
tempo, pediram incontáveis vezes que meu marido relatasse esse
episódio. Ele o fazia com gosto, imitando a vozinha do menino,
e ríamos muito.
Do
mesmo jeito que vinha, ia. Se, de repente, cismava de ir embora, dizia-nos
um seco e distraído tchau, dirigindo-se rápido para a
porta. De vez em quando, era Joana, a empregada de sua casa, quem vinha
buscá-lo. Quico não opunha a menor resistência.
Nunca fez birra. Às vezes, quando se demorava mais e sua presença
passava a ser inconveniente, tínhamos que despachá-lo:
- Quico, tá na hora de você ir pra casa.
Ele ia imediatamente, sem reclamar.
Temíamos
pelo futuro do garoto. Meu marido e eu conversávamos às
vezes sobre ele, analisávamos a situação, a família.
O desprendimento dos pais beirava o desamor. Quico ia onde queria, a
qualquer momento, solto na vida. Custavam a dar falta dele em casa.
Não foram poucas as vezes em que Joana veio procurá-lo,
meio aflita.
- Não, ele esteve aqui hoje mais cedo, mas já foi embora
faz tempo - informávamos.
Parece
que a mãe, três filhos do primeiro casamento e dois do
segundo, era um tanto desvairada, ausente, não se preocupava
mais com nada, deixava tudo por conta da Joana. Tínhamos um relacionamento
muito superficial. O pai viajava muito, era caladão. Os irmãos
mais velhos já eram adolescentes, não lhe serviam de companhia.
Quando Quico começou a ir à escola, pude vê-lo através
da janela do meu quarto, diversas vezes, cabelo ainda úmido,
penteado e partido de lado pela empregada, de uniforme e merendeira,
esperando o especial sentadinho junto ao portão. Sozinho. Ficava
com pena. Sentia um aperto no coração. Soube também
que passava dias sem ir à aula, principalmente depois que nasceu-lhe
o irmão mais novo. Ninguém se preocupava com isso. Ninguém
para consolá-lo, dizer que ainda era amado. Ficava ao sabor do
acaso, dos acontecimentos. Que se passaria na cabecinha do menino? O
que pensava da vida, meu Deus? Que espécie de pessoa se tornaria?
Não
me lembro de tê-lo visto chorar. Também não ria
desmesuradamente, soltamente, como as crianças de sua idade.
Parecia mais um adulto, insensível e forte. E meio triste. Quico
me intrigava.
Na
sua escala de afetos, primeiro vinha o Rique, é claro. Depois
a Zizi, depois o Wila, que de vez em quando também brincava de
autorama. A Lora, depois de umas brigas, ele aprendeu a respeitar, pois
era a irmã do amigo. E por último eu, só porque
não havia mais ninguém na casa.
Quico
parece que não gostava muito de mim. Ou nada. Não me dirigia
a palavra espontaneamente e nem me olhava nos olhos. Para provocá-lo,
quando o encontrava nas escadas, na garagem, ao portão, fazia
questão de falar-lhe, esforçando-me por dar uma entonação
clara e alegre à voz:
- Ei, Quico!
Sem resposta.
- Ei, Quico!
Nada. Insistia, mais uma vez, aumentando o volume, já com uma
indisfarçável ponta de irritação:
- Ei, Quico!
Ele afinal articulava um oi inaudível, sem sequer levantar a
cabeça. Era como se eu não existisse. Pessoa completamente
dispensável no seu mundo. Aquela indiferença me enraivecia
e magoava ao mesmo tempo. Passou a ser ponto de honra para mim conseguir
uma reação de sua parte, qualquer que fosse ela.
Experimentei
primeiro ser gentil, dar palpite nas brincadeiras, puxar conversa. Procurava
me mostrar bem humorada, tentava ser engraçada e interessante
como a Zizi. Ele não respondia. Nem uma palavra. Nem um sorriso,
um olhar. Sentia-me invisível e ridícula. Então,
comecei a oferecer-lhe pequenos agrados quando estava em minha casa:
bala, biscoito, refrigerante. Quico aceitava tudo, mas sem entusiasmo,
como se aquilo não fosse mais que minha obrigação.
Quando agradecia era lacônico e não me olhava de frente.
Passei, em seguida, a brava e implicante. Xingava pela bagunça,
pelos brinquedos espalhados. Nada. Ele nem ligava. Tentei então
me comportar apenas como uma adulta em seu papel de mãe do amigo,
educada e um pouco distante. Não obtive êxito. Nenhuma
tática funcionava. O pequeno vizinho adivinhava meus ardis, desprezava-me,
ria-se por dentro de minhas grotescas investidas.
Por
fim, desisti de conquistar seu afeto. Resolvi, infantil, que não
ia gostar dele também, e pronto. Recolhi-me, passei a não
cumprimentá-lo mais, cara fechada. Que me importava? Aceitei
a verdade pura e simples: não tinha mesmo jeito com crianças,
nem merecia qualquer atenção da parte delas. Havia algo
em mim que afastava-as, tornava-as arredias, desconfiadas. Era inútil
qualquer tentativa de aproximação. Na verdade, elas não
eram culpadas de minhas inseguranças, tinha de reconhecer.
Um
dia, mudaram-se de lá. Abruptamente, sem aviso, sem sequer despedirem-se
dos vizinhos do prédio. Parece que por problemas financeiros.
O sossego foi tão grande que doeu. Muito mais que meu próprio
filho, eu senti a falta do garoto. Descobri, na mesma semana, um boneco
do Batman esquecido debaixo da cama do Henrique. Era do Quico. Seu rostinho
fez-se mais nítido em minha memória. Queria tê-lo
abraçado antes de ele ir-se, mesmo contra a sua vontade. Dar-lhe
um presente sincero, um beijo, esquecer nossas diferenças. Dizer
simplesmente que gostava dele, apesar de minha incompetência em
conquistá-lo. Mas os vizinhos já tinham ido. E não
voltaram.
Algum
tempo depois, também nós nos mudamos daquele bairro. A
vida mudou. Perdemos o contato por completo. Nenhuma notícia
de Quico e sua louca família. Ficaram somente o Batman e as lembranças,
meio apagadas pelo constante ir e vir de pessoas e fatos.
Muitos
anos mais tarde, porém, meus filhos já crescidos, casualmente
iria reencontrá-lo. Ia dirigindo distraída, sozinha, a
caminho do trabalho, manhã fria. O sinal fechou e parei na primeira
fila. Após alguns instantes, ouvi uma buzinada breve. Virei-me.
Era o motorista do carro à direita tentando chamar minha atenção.
Preparei-me para dar uma informação. Uma cara jovem, alegre.
A expressão franca e madura. O blusão de moleton marrom,
simples. Demorei uns segundos para reconhecê-lo. O rapaz olhava-me
diretamente com aqueles inconfundíveis olhos muito azuis. Ele
tinha aberto o vidro, inclinou-se um pouco, apoiou-se na janela, o rosto
querendo projetar-se para fora. E gritou sorrindo larga, sinceramente:
- Ei, Telma!
Fiquei
um momento paralisada, atônita. Estupidamente, lembrei-me do Batman,
guardado por todo aquele tempo, minha intenção em devolvê-lo.
O sinal abriu e já buzinavam atrás. Só tive tempo
de acenar, desajeitadamente, pois ele, ainda me olhando e sorrindo,
arrancou e partiu.