2º CONCURSO DE LITERATURA DA FENAE – LETRAFENAE 2004

3º lugar na categoria Contos


Vera Lourdes de Souza (Belo Horizonte/MG)

 

QUICO

Maria Eleutéria

Decidimos então que o remédio era já deixar a porta da sala destrancada. Pelo menos durante o dia. Assim evitávamos as corridas para atender à campainha insistente que tocava a toda hora, ou às batidas fortes que ecoavam por todo o prédio, incomodando os vizinhos.

Quando menos se esperava, lá vinha ele, sem nenhuma cerimônia. Apenas girava a maçaneta e entrava, naturalmente, como se morasse ali. Os pés descalços e imundos, as pernas muito brancas picadas por pernilongos, joelhos escalavrados, a camiseta de malha surrada e aqueles olhos de um azul inigualável, contrastando com os negros cabelos. Pelo menos, dignava-se a perguntar, sempre sério:
- O Rique taí?
Ao que respondíamos, muitas vezes nos recompondo às pressas, pois costumávamos ver televisão mais à vontade no sofá:
- Tá lá dentro, Quico. Pode ir lá.
Corria feito um risco pro quarto do meu filho.

Essa falta de privacidade dentro de minha própria casa me incomodava.
- Que impertinência! Será que esse menino não desconfia? A mãe não dá educação?
- É criança, Telma, não seja tão rigorosa... Aos quatro, cinco anos, não se tem ainda esse discernimento - meu marido me fez compreender.

Achava era graça agora. Pensando bem, fora a cotidiana invasão domiciliar, quase não dava trabalho. Essa era a vantagem. Não havia que fazer sala, cara boa, inventar assunto, preparar lanche especial para aquela criatura. O que vinha, aceitava de bom grado. Se não viesse nada, estava tudo certo. Frequentemente ficava para o almoço ou para o lanche da tarde, sem se fazer de rogado. Comia de tudo, sem constrangimentos, derramando na mesa e no chão metade da comida. Olhava já irritada, pensando que a limpeza sobraria para mim, e ele nem ia agradecer, muito menos se desculpar por isso.

Seu real interesse era tão-somente estar com o Henrique. Uns três anos mais velho, não compreendia como meu filho podia tolerar o pequeno, que nem ao menos sabia falar direito ainda. Mas, incrivelmente, davam-se muito bem. Henrique tinha de sobra o que faltava em mim: paciência, espírito aberto e generoso. Jogavam bola na garagem, brincavam de luta, autorama, trocavam figurinha, um boneco por outro, uma miniatura de moto por uma revistinha, e coisas assim. Nunca brigavam. Gostava de observá-los juntos. Entre si dispensavam rodeios, formalidades ou falsos sorrisos. Ao se encontrarem, nem se cumprimentavam. Para quê? Um dos dois já fazia logo uma proposta qualquer, como andar de bicicleta, ou exibia a figurinha do jogador que faltava para completar seu álbum. Palavras, o mínimo necessário. Se acontecia de meu filho não querer ou poder brincar, apenas dizia a Quico que voltasse outra hora. Simples assim.

Zizi, minha empregada, também conseguiu atrair sua simpatia. Sem o menor esforço. Era jeitosa com crianças, adentrava fácil o mundo da fantasia, tinha bom humor e uma voz fina que, imagino, agradava. Num sábado em que deixáramos a porta trancada, William foi atender à campainha, e era ele, no seu short azul-marinho:
- O Rique taí?
- Não, Quico. O Henrique tá no futebol.
- E a Zizi?
- A Zizi tá. Quer falar com ela?
- Não.
E foi-se, aquela coisa pequena e suja. Henrique e Lorena, durante muito tempo, pediram incontáveis vezes que meu marido relatasse esse episódio. Ele o fazia com gosto, imitando a vozinha do menino, e ríamos muito.

Do mesmo jeito que vinha, ia. Se, de repente, cismava de ir embora, dizia-nos um seco e distraído tchau, dirigindo-se rápido para a porta. De vez em quando, era Joana, a empregada de sua casa, quem vinha buscá-lo. Quico não opunha a menor resistência. Nunca fez birra. Às vezes, quando se demorava mais e sua presença passava a ser inconveniente, tínhamos que despachá-lo:
- Quico, tá na hora de você ir pra casa.
Ele ia imediatamente, sem reclamar.

Temíamos pelo futuro do garoto. Meu marido e eu conversávamos às vezes sobre ele, analisávamos a situação, a família. O desprendimento dos pais beirava o desamor. Quico ia onde queria, a qualquer momento, solto na vida. Custavam a dar falta dele em casa. Não foram poucas as vezes em que Joana veio procurá-lo, meio aflita.
- Não, ele esteve aqui hoje mais cedo, mas já foi embora faz tempo - informávamos.

Parece que a mãe, três filhos do primeiro casamento e dois do segundo, era um tanto desvairada, ausente, não se preocupava mais com nada, deixava tudo por conta da Joana. Tínhamos um relacionamento muito superficial. O pai viajava muito, era caladão. Os irmãos mais velhos já eram adolescentes, não lhe serviam de companhia. Quando Quico começou a ir à escola, pude vê-lo através da janela do meu quarto, diversas vezes, cabelo ainda úmido, penteado e partido de lado pela empregada, de uniforme e merendeira, esperando o especial sentadinho junto ao portão. Sozinho. Ficava com pena. Sentia um aperto no coração. Soube também que passava dias sem ir à aula, principalmente depois que nasceu-lhe o irmão mais novo. Ninguém se preocupava com isso. Ninguém para consolá-lo, dizer que ainda era amado. Ficava ao sabor do acaso, dos acontecimentos. Que se passaria na cabecinha do menino? O que pensava da vida, meu Deus? Que espécie de pessoa se tornaria?

Não me lembro de tê-lo visto chorar. Também não ria desmesuradamente, soltamente, como as crianças de sua idade. Parecia mais um adulto, insensível e forte. E meio triste. Quico me intrigava.

Na sua escala de afetos, primeiro vinha o Rique, é claro. Depois a Zizi, depois o Wila, que de vez em quando também brincava de autorama. A Lora, depois de umas brigas, ele aprendeu a respeitar, pois era a irmã do amigo. E por último eu, só porque não havia mais ninguém na casa.

Quico parece que não gostava muito de mim. Ou nada. Não me dirigia a palavra espontaneamente e nem me olhava nos olhos. Para provocá-lo, quando o encontrava nas escadas, na garagem, ao portão, fazia questão de falar-lhe, esforçando-me por dar uma entonação clara e alegre à voz:
- Ei, Quico!
Sem resposta.
- Ei, Quico!
Nada. Insistia, mais uma vez, aumentando o volume, já com uma indisfarçável ponta de irritação:
- Ei, Quico!
Ele afinal articulava um oi inaudível, sem sequer levantar a cabeça. Era como se eu não existisse. Pessoa completamente dispensável no seu mundo. Aquela indiferença me enraivecia e magoava ao mesmo tempo. Passou a ser ponto de honra para mim conseguir uma reação de sua parte, qualquer que fosse ela.

Experimentei primeiro ser gentil, dar palpite nas brincadeiras, puxar conversa. Procurava me mostrar bem humorada, tentava ser engraçada e interessante como a Zizi. Ele não respondia. Nem uma palavra. Nem um sorriso, um olhar. Sentia-me invisível e ridícula. Então, comecei a oferecer-lhe pequenos agrados quando estava em minha casa: bala, biscoito, refrigerante. Quico aceitava tudo, mas sem entusiasmo, como se aquilo não fosse mais que minha obrigação. Quando agradecia era lacônico e não me olhava de frente. Passei, em seguida, a brava e implicante. Xingava pela bagunça, pelos brinquedos espalhados. Nada. Ele nem ligava. Tentei então me comportar apenas como uma adulta em seu papel de mãe do amigo, educada e um pouco distante. Não obtive êxito. Nenhuma tática funcionava. O pequeno vizinho adivinhava meus ardis, desprezava-me, ria-se por dentro de minhas grotescas investidas.

Por fim, desisti de conquistar seu afeto. Resolvi, infantil, que não ia gostar dele também, e pronto. Recolhi-me, passei a não cumprimentá-lo mais, cara fechada. Que me importava? Aceitei a verdade pura e simples: não tinha mesmo jeito com crianças, nem merecia qualquer atenção da parte delas. Havia algo em mim que afastava-as, tornava-as arredias, desconfiadas. Era inútil qualquer tentativa de aproximação. Na verdade, elas não eram culpadas de minhas inseguranças, tinha de reconhecer.

Um dia, mudaram-se de lá. Abruptamente, sem aviso, sem sequer despedirem-se dos vizinhos do prédio. Parece que por problemas financeiros. O sossego foi tão grande que doeu. Muito mais que meu próprio filho, eu senti a falta do garoto. Descobri, na mesma semana, um boneco do Batman esquecido debaixo da cama do Henrique. Era do Quico. Seu rostinho fez-se mais nítido em minha memória. Queria tê-lo abraçado antes de ele ir-se, mesmo contra a sua vontade. Dar-lhe um presente sincero, um beijo, esquecer nossas diferenças. Dizer simplesmente que gostava dele, apesar de minha incompetência em conquistá-lo. Mas os vizinhos já tinham ido. E não voltaram.

Algum tempo depois, também nós nos mudamos daquele bairro. A vida mudou. Perdemos o contato por completo. Nenhuma notícia de Quico e sua louca família. Ficaram somente o Batman e as lembranças, meio apagadas pelo constante ir e vir de pessoas e fatos.

Muitos anos mais tarde, porém, meus filhos já crescidos, casualmente iria reencontrá-lo. Ia dirigindo distraída, sozinha, a caminho do trabalho, manhã fria. O sinal fechou e parei na primeira fila. Após alguns instantes, ouvi uma buzinada breve. Virei-me. Era o motorista do carro à direita tentando chamar minha atenção. Preparei-me para dar uma informação. Uma cara jovem, alegre. A expressão franca e madura. O blusão de moleton marrom, simples. Demorei uns segundos para reconhecê-lo. O rapaz olhava-me diretamente com aqueles inconfundíveis olhos muito azuis. Ele tinha aberto o vidro, inclinou-se um pouco, apoiou-se na janela, o rosto querendo projetar-se para fora. E gritou sorrindo larga, sinceramente:
- Ei, Telma!

Fiquei um momento paralisada, atônita. Estupidamente, lembrei-me do Batman, guardado por todo aquele tempo, minha intenção em devolvê-lo. O sinal abriu e já buzinavam atrás. Só tive tempo de acenar, desajeitadamente, pois ele, ainda me olhando e sorrindo, arrancou e partiu.