2º CONCURSO DE LITERATURA DA FENAE – LETRAFENAE 2004

3º lugar na categoria Crônicas


Simone Cecília Meneghello Cortez (São Paulo/SP)

 

O MEU CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA

“Tanto eu li sobre o famoso Caminho de Santiago, na Espanha, que liga Roncevalles(divisa com a França), extremo leste espanhol, à Santiago de Compostela, que verdadeiramente emocionada, decidi juntar dinheiro pra ir para lá e conferir pessoalmente se algum mago, ou pessoas comuns(mas sábias) poderiam conferir alguma funda mudança em minha vida, em mim.
Juntar dinheiro e tempo foi o meu primeiro degrau para chegar lá. Mas eu superei. E fui. Tinha lido absolutamente tudo sobre todas as coisas que envolviam o tal caminho: desde os clássicos Paulo Coelho e Baby Consuelo, até depoimentos e livros de jornalistas e empresários que descobriram verdadeiras jóias interiores fazendo a trilha pelo “Caminho Francês”(o mesmo que eu faria!).

O segundo degrau foi, talvez, o pior de todos para superar: ir com duas calcinhas, duas camisetas, dois shorts e um sutiã para viver por um mês e meio! Olhei para esse tipo de “voto franciscano”, e resolvi acrescentar outras coisinhas “básicas”de sobrevivência, tão úteis quanto duas calcinhas, para uma mulher que se dispunha a andar à pé nada menos que 800 quilômetros no exterior: um creme anti-rugas(já passara dos 30), uma toalha de rosto(que, acreditem: serviria para banho!), protetor solar, um batonzinho, rímel e delineador(praticamente peso “zero”na mochila peregrina), um chinelinho de pano para descansar à noite no albergue e um pijama. Ah! E um casaco de frio, afinal iria no finalzinho do verão e começo do outono. Quis levar um casaco simples, mas minha cunhada colocou na mochila um “casaco de neve”!...Capa de chuva também. Aquelas capas com corcundas nas costas(para cobrir a mochila, inclusive).

O terceiro degrau também superei: viajar totalmente só, sem nenhum amigo ou parente ou namorado. Ninguém. Mas essa parte foi “mole”, diria até gostosa. Peguei o vôo São Paulo-Madri. Aterrisei em Madri, saudosa da outra vez em que estive lá por causa de um “hombre de verdad”, aqueles tipos “toreros”, “muy hombres”. Mas os tempos eram outros, não de paixões, mas de “descobertas interiores”. Peguei o trem até uma cidade próxima e, de lá, um táxi até Roncesvalles.

Logo que cheguei, conheci o primeiro albergue: organizadíssimo. Coisa de “primeiro mundo”. Gente de todo mundo! Na verdade, eu fui para lá mais para conhecer os locais que não conhecia, os pequenos “pueblos”, locais onde uma excursão turística não me levaria. Mas trazia, dentro de mim, a esperança de mudar alguma coisa no meu interior com tudo o que viveria.

Comprei um cajado, com a famosa Vieira esculpida nele, e saí andando, seguindo as marcações que há na mata, junto com um certificado que teria que carimbar a cada albergue que dormisse. O início do Caminho, com uma mata frondosa, castelos e edificações antigas, era um verdadeiro colírio para os olhos. Fui conhecendo as primeiras pessoas que me marcaram: uma mãe e a filha que caminhavam juntas. Acreditem: mineiras, de Belo Horizonte! Mineiro está mesmo por toda parte!

A filha, Ludmila, de 22 anos, resolvera fazer o Caminho, e a mãe, temerosa, resolveu ir junto para “tomar conta da menina”. Só que a diferença de idade entre as duas promovia desencontros: a menina disparava na frente e a mãe ficava para trás, falando sozinha. Gostei muito delas, eram divertidas. A Dona Dolores, mãe da Ludmila, cruzou o Caminho bem mais consciente do que eu. Dizia a torto e a direito: “Eu, uma mulher de “shopping”! Aquï! Metida nesse mato, passando por isso??!!

Que minhas amigas nunca saibam que estou pagando esse mico!” E não deixava que ninguém tirasse uma foto sua, sequer, porque dizia que negaria até o fim que era ela. Cruzei com a duas em vários pontos do Caminho, e a mãe sempre a berrar: “Ludmila, minha filha, espere por mim!”
Mais adiante, conheci outro brasileiro, o Sr. Alcione, que me garantia que aquela trilha era cheia de “brujas”da Idade Média e “contatos imediatos do terceiro grau” . Ele esperava por contatos extraterrestres e, quem sabe, uma “abduzida”, ainda que de leve...

Terminei meu primeiro dia 25 quilômetros depois. Meu joelho direito estava levemente pesado, mas nada que um bom repouso não resolvesse. Albergue, banho, um quarto só de mulheres, lavagem da calcinha e camiseta(afinal eram só duas de cada!) e cama. Na hora em que coloquei meu pijama e meu chinelinho, foi um choque geral! Parecia que um ser de outro mundo tinha se instalado ali entre os peregrinos. Nem Santiago de Compostela, em pessoa, causaria tanto espanto. Constatei que todos ali se banhavam e (eca!) dormiam com a roupa que caminharam o dia todo. Fiz que não vi as expressões gerais e tentei não me sentir deslocada.

Fatos interessantes me deixaram passada(não sei se foi isso que fui até lá aprender?...): almoçava, na maioria dos dias, uma bengala INTEIRA(de pão italiano!) com “jamon”(um tipo de presunto espanhol). Eu me assustava com o que comia e bebia(que era, em média, quase um litro de vinho junto com a bengala!). Ainda assim, chegava no albergue e jantava! E emagreci no percurso. Parecia um brutamontes comendo.

Dia sim, dia não, encontrava o Sr. Alcione, com amigos espanhóis e italianos, olhando para o céu buscando ÓVNIS, e a Dona Dolores a gritar: “Ludmila, minha filha, espera!”(até que se perderam em definitivo e só voltaram a se reencontrar em Santiago de Compostela).
Conheci o Paul, também, um engenheiro inglês, que colecionava bolhas nos pés. Cada vez que encontrava com ele num albergue, a situação do seu pé estava mais e mais imprestável. A ponto de toda sola dos pés ficar em carne viva! Mas ele não parava. Insistia na penitência. Aquilo começava a me revirar o estômago. Comecei a achar que aquele misticismo todo que me cercava era coisa de “eras passadas”: gente cumprindo promessas, bolhas nos pés, neguinho querendo ver disco voador, rezas...Eu me irmanava, cada vez mais, com a Dona Dolores, mãe da Ludmila.

Meu joelho direito doía cada vez mais. Resolvi, ao final de um dia de caminhada, parar num hospital. Na ante-sala do médico encontrei Paul. Ele chorava tanto, que decidi entrar com ele no médico. Ficou constatado que ele teria que parar o Caminho ou poderia ter dedos dos pés negrosados, e, quiçá, amputados! Ele era a derrota em pessoa. Parecia que tinha recebido a sentença de morte. Ele achava que ficaria mais perto de Deus se não desistisse do Caminho, acreditava num milagre. Mas tive que traze-lo para a “real”, dizendo que além de não encontrar Deus, perderia os dedos dos pés e nunca mais voltaria a fazer o Caminho de novo! E que, se perdesse algum dedo, ainda que por causa divina, estaria mais e mais longe da Verdade, portanto, de Deus.

Como acompanhei sua consulta, ele ficou na minha: joelho “sobrecarregado”. Estava carregando muito peso na mochila. O médico ficou pasmo ao ver pijama, chinelo, cremes e casaco comigo. Com uma sensação pior que a de Paul, joguei cremes caríssimos no lixo!! Cremes só, não: batons, rímel, delineador, hidratante para o cabelo, pijama e chinelo! Só não joguei o casaco porque era da minha cunhada. Despachei-o pelo correio até Santiago. Pegaria lá, quando chegasse. Até a toalha do rosto o médico me fez jogar, e me deu umas fraldinhas, aquelas de pano, de nenê, para me enxugar, pois além de absorver bem, não pesava. Vocês não imaginam o fedor que ficou esse trapinho no final do Caminho!!!....

O Paul voltou para casa. Eu continuei(não sabia por quanto tempo ainda, porque já começava a me estressar....). À medida que avançava mais para o centro da Espanha, a região ficava mais árida e quente. Em umas das cidades tivemos que dormir num mosteiro do século quinze. Um local lindo para visitação, mas tétrico para se dormir: no meio de um monte de santos, escuro, “pesado”. E eu passando mal do estômago. Deram-me um comprimido para aliviar o mal estar, mas aquilo me disparou o coração e passei a noite toda andando feito uma “zumbi”no corredor daquele lugar mal assombrado. E acho que era mal assombrado mesmo, corriam “papos”de padres que tinham cometido suicídio no local....

Continuei o Caminho, e passei por Burgos, uma cidade lindíssima. Vi a Dona Dolores numa “peluqueria”, um cabeleireiro daqueles bem chiques, fazendo mão, pés e cabelo, Quase me senti a mais idiota dos seres: meu cabelo parecendo uma verdadeira palha depois que joguei os cremes fora, uma noite daquelas que tive, e ela ali. Quis entrar, mas decidi pagar umas horas num hotelzinho para dormir.

Lá pelo meio do Caminho, conheci Antonio, um espanhol de Zaragoza, mais um “torero” em minha vida. Aquilo já me deu uma “sacudida”, uma animada. Eu já estava quase por largar a penitência, pegando um ônibus e indo para Madri gastar meu resto de dinheiro em passeios e uma boa cama, mas o Antonio me fez rever tudo....Quando o coração pensa no lugar da cabeça, o corpo padece...Coisa de mulher...

Jantei com Antonio e depois fomos para o albergue tomar banho. Fui para o banheiro do meu quarto(“meu” é modo de dizer, já que mais umas 20 pessoas dormiam ali) , sem saber que ali era banheiro para ambos os sexos. Saindo do chuveiro, dei de cara com um holandês, um verdadeiro Vicking, de olhos azuis, totalmente nu e em posição de “quase” ataque(se é que me entendem). Comecei a gritar e, ele, sem saber o que acontecia, gritava outras coisas em uma língua esquisita, e pulava sem parar. Coloquei a tal fraldinha de nenê(que era minha toalha de banho desde o hospital), mas ficou pior a emenda que o soneto, pois grudou no meu corpo molhado e ficou tudo transparente. Um horror! Eu gritando e pulando no chuveiro, e ele gritando e pulando ao lado do vaso sanitário.

Entraram Antonio, logo o meu “torero” com outros no local e todo mundo rindo até! Diziam: “Logo você, uma brasileira, praia, sol, tangas, e cheia de pudores desse jeito??!!”
Percebi que eram muito, muito comuns os banhos mistos. E eles realmente não tinham maldade. Tive que me acostumar até com isso. E o pior foi o mico que paguei na frente do Antônio....

Não tinha bolhas nos pés, mas tinha bolhas na alma: cremes caros no lixo, noites mal dormidas, pulando pelada com aquele holandês no banheiro, duas calcinhas revezadas desde há dias, em estado de petição de miséria, cabelo de palha....Se não fosse o Antônio....
Caminhamos juntos alguns dias, eu e ele. Essa foi a parte boa da trilha toda. Até que num dia de grande chuva, tempestade mesmo, tirei minha capa da mochila e me senti a própria “Lala”, dos
Teletubies: toda amarela, com aquela corcunda nas costas, e o vento rasgando a capa toda! Coisa de gente maluca! Paramos numa fonte que jorrava vinha, ao invés de água. A tempestade diminuíra muito. Todos pegavam um copo e seguiam. Os brasileiros enchiam de duas a três garrafas d’água, querendo tirar proveito da situação....Sem comentários. Jurei que não ia me estressar com mais aquilo...Me fiz de européia e que não conhecia aqueles “tupiniquins”....

Depois de um dia desses, cheguei no “pueblo” e foi a coroação: Não tinha vaga no albergue! Pela primeira vez na vida, senti que dormiria literalmente na rua, ao relento. E já começava a esfriar. Mas e a hospitalidade que tinha tanto lido, daquele povo simples dos “pueblos”? Eu e mais três pessoas(incluindo o Antonio) estávamos ao relento, sem banho! Faltava um triz para eu explodir! O que mesmo eu tinha ido fazer lá?? Eu, Dona Dolores, Antonio e um alemão ao relento. Justo a Dona Dolores, uma mulher de “shopping”!...A indignação dela era totalmente minha: “Nesse fim de mundo, com dinheiro para pagar um hotel, e nem hotel tem nesse povoadinho de merda!!? Em Minas eu dava de comer e pousada pra uns coitados feito nós, uai!” Ela reclamava tanto, que uma senhora acabou vindo nos oferecer pousada. Já era tarde da noite, pouca luz, frio. Fomos.

Sem janta, nos deu um balde com canequinha para nos banhar; nos alojou num barracão no fundo do seu quintal, sem luz e sem colchão! Dona Dolores, coitada, “uma mulher de shopping”, deixou cair o queixo, que nem falava mais nada. Quando dissemos que queríamos fazer xixi, esperando que ao menos o banheiro da casa nos deixasse usar, ela nos trouxe outro balde para fazermos nossas “necessidades”....Vendo aquilo foi risada geral. E a Dona Dolores usou aquele balde a noite inteira!!!

Rimos para não chorar.

Cinco horas da manhã. Um galo canta atrás da cabeça do alemão. Estávamos dentro de um galinheiro!! Sim! Um galinheiro! Com algumas galinhas, um galo e nós!!Dormimos com as galinhas, fizemos xixi no balde, sem banho, lavamos o rosto na canequinha e, ao sair, o pior: o galinheiro era no meio de um cemitério!

Eu já tinha conhecido meu interior!!Pra mim bastava!! Nem o Antonio me segurou mais por ali! Peguei um ônibus para Santiago de Compostela e encontrei um monte de peregrino que chegava lá aos prantos. Sei lá se de emoção ou de quê!!! Chega-se no final cheirando a mendigo, por mais banhos que tomemos!! As roupas podres, têm de ser queimadas! Eu fiquei num hotel cinco estrelas, tomei um super banho e gastei meu resto de dinheiro em roupas novas, cremes, perfume e cheguei lá feliz da vida, cheirosinha!!! Parecia mais turista que peregrina. E foi vestida assim, que fui entregar meu certificado. Quem fizesse o Caminho todo à pé, tivesse todo certificado carimbado, recebia a “compostelana”, um tipo de “honra ao mérito”divino. Eu tinha feito metade do Caminho. Mas sei lá o que deu na cara que vistoriou meu certificado, que ele me deu a tal compostelana! A Dona Dolores ria da minha sorte! Eu acho que Deus sabe do que cada um precisa para crescer. Eu. decididamente, não preciso dormir com galinhas, fazer xixi num balde e viver com duas calcinhas apenas!

Sempre pensei que escreveria um livro, ou pelo menos um depoimento da minha viagem interior!! Nunca mais quis nem falar no assunto. Agora, como a Caixa me deu um espaço, resolvi lembrar e falar a parte que ninguém toca sobre o Caminho de Santiago. Depois de 3 meses, mais ou menos, que voltei ao Brasil, a Caixa me chamou e comecei a trabalhar. Milagre de Santiago? Graça Divina? Não sei...Vocês é quem dizem....”