2º
CONCURSO DE LITERATURA DA FENAE – LETRAFENAE 2004
Menção
honrosa na categoria Contos
Rodrigo Baldin Fernandes (Salvador/BA)
Um
Homem Feliz
Antônio é um homem alto. Seus cabelos ondulados e castanhos,
olhos bem escuros e rosto expressivo lhe conferem uma fisionomia marcante.
Não é fácil esquecê-lo, ainda mais quando
reparamos seu porte de urso e, mais detidamente, seus braços
fortes e mãos enormes e calejadas, tão comuns aos operários
da fábrica onde ele trabalhava.
Antônio agora está no ônibus da empresa, voltando
do fatídico dia de sua demissão, com a carta de dispensa
no colo.
Um pouco mais adiante, ele pede para o motorista parar antes da sua
casa.
- Pare ali, por favor. Hoje eu não vou pra casa direto.
O motorista, que em tantos anos nunca vira o Antônio tomar tal
atitude, se dá conta da situação e responde no
tom mais simpático que ele conseguiu expressar:
- Claro, Antônio.
Já na rua, Antônio caminha em direção a um
bar escuro com várias cadeiras viradas por sobre as mesas. Apesar
de aparentemente não haver qualquer atrativo especial que pudesse
atraí-lo para aquele lugar, a escolha se deu por Antônio
conhecer um dos garçons, primo de sua mulher.
Após sentar-se num banquinho típico de bar, daqueles que
ficam suspensos por uma haste metálica, ele se debruça
sobre o balcão. Um copo pequeno de cachaça está
um pouco à frente e está vazio.
Antônio chegou para trabalhar no horário habitual e foi
chamado para conversar antes mesmo de ir assumir seu posto, atitude
que, naquela como em muitas outras empresas, quase sempre se toma para
repreender ou demitir, jamais para agradecer ou dar boas notícias,
e, portanto, sinal inequívoco do que estaria por vir.
Porta abrindo. Gerente engravatado. Cadeira. Café. Demissão.
Porta batendo. Pronto.
Assim é que ele está ali, paralisado, em plena manhã
de uma quarta-feira às 10:30 em um bar, carta de demissão
à sua frente.
Ele ergue a carta, no intuito de vê-la uma vez mais vez.
Flashes das suas frases insistem em voar cintilantes por sua cabeça.
Íntegra da carta:
Comunicado de Desligamento de Colaborador
É com profundo pesar que comunicamos o desligamento do Sr. ANTÔNIO
ALMEIDA DOS SANTOS, colaborador desta empresa desde 1975, face ao agravamento
dos problemas financeiros por nós vividos, em especial nos últimos
dois anos. Desejamos ao mesmo sucesso na continuidade da sua carreira
profissional.
Atenciosamente.
___________________________
Gerência de Recursos Humanos
-
Sacanas! Me desejar sucesso só pode ser sacanagem! Como é
que, nesse país de merda, um homem com mais de quarenta anos
e que só trabalhou em uma empresa pode ter sucesso depois de
ser demitido? Só se sucesso for não morrer de fome! É
lógico! Agora vou ter que me humilhar pra conseguir um empreguinho
qualquer, só pra não morrer de fome – fala consigo
mesmo o Antônio, com cuidado para não parecer maluco por
falar sozinho.
Depois de uma pequena pausa e uma olhada no relógio, Antônio
pergunta ao cara atrás do balcão:
- Quanto é que dá aqui, barão?
- Três pingas, três reais.
Antônio pega duas notas de um real na carteira e abre o zíper
onde ficam as moedas, tira todas de lá e conta: 1 mais (25, 30,
40, 90, 1 real).
- Aqui – fala o Antônio já saindo do bar.
O garçom não fala nada, nem olha o Antônio, e passa
a contar as moedas deixadas no balcão.
Apesar de já estar fora do bar, várias frases ditas antes
insistem em ecoar nos seus ouvidos, num pulsar incessante que não
o abandonaria tão cedo e que, pela repetição, fica
cada vez mais confuso.
-“Antônio, querem falar contigo, é lá da sala
do Sr. Ricardo.”;
-“Sacanas! Só pode ser sacanagem!”;
-“25,30,40,90, 1 real”.
Antônio entra e chega até a porta de sua casa. Nem bem
ele entra em casa, seu filho menor corre em sua direção:
- Pai...pai... fiz dois gols hoje no colégio, sabia? Vem, vamos
brincar.
- Não, filho. Agora não. Deixa o papai tomar banho primeiro.
- Ah, pai... vamos! Só um pouquinho...
- Agora não, já disse. Depois que o papai tomar banho
e jantar a gente brinca, tá bom?
- Tá – responde, descontente, o garoto.
Sua mulher o vê entrar no banheiro. Não fala com ele porque
sente o clima pesado no ar. Ela pensa, em voz alta, consigo mesma: “Deve
ter sido mais um dia frustrante no trabalho. Tá cada dia pior”.
Enquanto isso, no banheiro, Antônio deixa a água cair sobre
ele, numa cena típica de desalento e reflexão. Ele encosta
a cabeça nos azulejos à sua frente e boceja algumas frases:
- E agora? Como é que eu vou contar esta merda pra Edna?
- Pelo menos eu ainda tenho alguma coisa pra receber...
- É... vai dar alguma coisa...quase 27 anos de empresa....
- Mas não vai dar pra sempre... Deus! Meus filhos ainda são
crianças!
Antônio sai do banheiro só de toalha e vai para o quarto
do casal se vestir. Na passagem, ele dá uma olhada rápida
no quarto logo à esquerda do banheiro, o quarto das crianças,
e vê que sua filhinha está quieta, provavelmente dormindo.
Ele segue em frente, se veste e vai para a cozinha ver se tem algo pronto
para comer, pensando consigo mesmo: “tomara que a Edna tenha chegado
mais cedo hoje, porque se ela não tiver feito nada eu vou é
comer biscoito com água. Pra ficar ainda mais barrigudo...”.
Finalmente, com esta brincadeira, ele dá o primeiro sorriso deste
dia ao apalpar a barriga, completando:
- Tô ficando velho...
Ao chegar à cozinha, Edna olha pra ele e, apreensiva, vai logo
perguntando:
- Oi amor. O que foi? Você tá bem?
- Tô. É só que eu tive mais um dia de cão
no trabalho.
- O que foi dessa vez?
- Fui demitido.
Assim, seco. Sem meias palavras. Clima denso no ar, a conversa parece
ter levado um soco na cara e cambaleia no córner. Edna, apropriadamente,
não fala mais nada. Antônio baixa a cabeça e começa
a lavar os pratos sujos que estão na pia. Antônio, por
dentro, sente uma boa dose de alívio. Afinal, ele se livrara
de um fardo que ele, até aquele momento, carregava sozinho. Agora
eram os dois. A resposta e as atitudes não eram, ou pelo menos
não seriam, só dele. A cabeça de Antônio
começa a girar de novo, uma fração de segundo depois,
pois ele percebe que o problema não desapareceria com o alívio
que ele sentia, ao contrário, era agora que ele começaria
a incomodar pra valer. Amanhã ele não vai precisar acordar
cedo. No final do mês não tem nada pra sacar na conta,
mas as outras contas todas vão vencer, e aí? Quanto mais
Antônio pensa, mais sua cabeça dói. Então
ele quebra este círculo destrutivo quando fala:
- Vamos ter que cortar algumas coisas aqui. Tomara que dê pra
segurar sua faculdade e a escola do Júnior.
- Vai dar – responde Edna.
- Sim, mas tá tudo subindo o tempo todo, daqui a pouco a gente
só vai ter um lugar pra ficar: embaixo da ponte. Tenho que arranjar
outra coisa.
- Vamos ficar de olho no jornal. Pelo menos você vai receber uma
boa grana.
- Tomara. Do jeito que eles são, eu não duvidaria se eles
não tivessem recolhido nada do meu FGTS. É... com mais
alguma coisa que eu tenho pra receber dá pra agüentar. Tem
muita gente pior por aí.
- Se anime, vamos! Já almoçou? Com essa cara de cachaça....
- Que cachaça o quê! Nem demorei no bar...
- Já almoçou?- insiste Edna.
- Não.
- Então faça seu prato. A comida está na geladeira.
Só agora Antônio percebe que já é de tarde.
Ele olha para o relógio: 14:30. Minutos depois, em frente a TV
ele exclama:
- Droga. Não tem nada bom. É sempre a mesma merda.
Antônio usa o controle remoto para desligar com veemência
a TV. Ele fica assim, imóvel, por algum tempo. Ele começa
a pensar: “Não é justo. Eu dei meu sangue por aquela
empresa. Não posso ser jogado fora desse jeito! O que é
que eu vou fazer, meu Deus? Vai ser difícil. Tudo vai piorar.
Meus planos de voltar a estudar vão pro brejo... Que bom que
a Edna foi tão compreensível. Ela realmente é maravilhosa.
Boa mãe, dedicada, esforçada. Com ela não tem tempo
ruim! Nossos filhos saíram da mesma fôrma dela... talvez
eu tenha alguma contribuição... é, nós,
juntos, formamos uma bela família...”.
Até que seu filho interrompe aos gritos:
- Pai! Pai! Vamos brincar agora?
- Vamos, filho.
A desinteressada atenção do seu filho, em conjunto com
a despreocupação relaxante de uma brincadeira infantil,
mudam claramente a fisionomia do Antônio.
Após uma longa sessão de brincadeiras, o participativo
pai coloca seu filho para tomar banho. Sua mulher percebe que o ar ficou
menos carregado e se aproxima para falar:
- Não se preocupe, querido. Já superamos tanta coisa juntos.
– Edna diz, carinhosamente e continua:
- Esta também vai passar. Juntos...
- Vai ser difícil - Antônio interrompe.
- Nossa! Você parece uma vitrola quebrada! Só fica repetindo
as mesmas coisas...
- Mas é! Tomara que eu encontre um emprego logo...
- Você vai! Vai, meu gatão! Vem cá, vem...
- Ah, Edna. Isso não é hora para brincadeira...
- E quem disse que eu tô brincando. Vem cá.
Os
momentos tranqüilos com sua mulher e filhos passam a fazer parte
da série de imagens que o Antônio agora vê passar,
já de madrugada, deitado no sofá da sala. Em meio a este
turbilhão de pensamentos e frases, uma idéia passa a dominar
a cena. A idéia de que ele era verdadeiramente um homem feliz.
Uma felicidade que dinheiro nenhum comprara, uma felicidade legitimamente
humana.
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