2º CONCURSO DE LITERATURA DA FENAE – LETRAFENAE 2004

1º lugar na categoria Crônicas


Ivone Melo Toledo (São Paulo/SP)

 

O SORRISO DE BENGALA


Foi de repente que passei a notar um muxoxo mais acentuado no rosto querido do Luís, colega de trabalho transformado em amigo há quase 20 anos. Posso jurar que é resultado de sua sazonal impertinência, exacerbada pela ação do tempo. Será que ele está mesmo mais rabugento? Talvez sejam os meus olhos, que, aliás, já experimentam o conforto do segundo par de óculos para perto. Deus meu, será mesmo que antigamente eu enxergava assim sem eles?

A outra perna desse garboso trio quase vencido pelo tempo chama-se Sílvia, nossa amiga querida que, por sua vez, também integra essa luta contra o óbvio. Em nosso último encontro, o recheio da prosa teve o sabor puxado para o ácido, o que talvez explique a impertinência que motivou esta crônica. Falamos bastante sobre pílulas para insônia, tampões macios para o ouvido, fornos para esquentar, duchas para esfriar, chás para os calores da mulher, e por fim chegamos à fatal constatação de que, apesar da consciência dos fatos, pouco podemos fazer a respeito. Onde antes faltava experiência, agora sobra compreensão. Só isso.

Lembro, sem medo de errar, como se fosse ontem: éramos os mais jovens do departamento, e levávamos o trabalho e a vida tão a sério quanto os planos para a sessão de cinema à noite. Era tudo tão leve e feliz, sem que faltassem o compromisso e a responsabilidade. Na verdade, o que faltava era o medo! A despreocupação é o presente de Deus para a juventude.

É bem verdade que o crédito das pessoas para conosco tinha a consistência de uma cantiga infantil. Por que motivo a humanidade tem tanta dificuldade em acreditar nos jovens? É preciso o testemunho de alguns sinais do tempo para que sejamos agraciados com alguma consideração... E, de repente, passamos a encarar o novo título de “senhora” ou “senhor” com a mesma naturalidade com que uma criança receberia de presente uma anágua de nylon. Devo advertir os mais jovenzinhos de que a transição é terrível, mesmo mantendo-se o bom humor.

E dá para manter o humor? Não! Essa etapa de transição começa, por mais espantoso que seja, de um dia para o outro. Radicalmente! Você dorme num dia e acorda no outro completamente em cacos. Parece que a caixa de Pandora se destampou durante o sono, libertando todas as pragas que agora levitam à sua volta. Aparece uma dorzinha aqui, um cansaço estranho ali, uma sensação diferente acolá. Quando então você corre em desespero para o espelho, buscando o consolo da imagem da sua juventude, o que você vê? Uma ruga do queixo à testa que lá não estivera ontem! Papagaio!

A partir daí, agora lentamente, é possível observar os efeitos dessa fase devastadora no seu próprio e nos corpos das pessoas de sua geração: cabelos brancos sorrateiramente arrancados, depois disfarçados com luzes, depois cobertos com tintura natural, depois tingidos de verdade. De vermelho. Amarelo. Até lilás. As manias antes nubladas pelo viço agora acendem uma seta neon sobre a cabeça de seu portador: aqui mora um impertinente de meia-idade.

Por outro lado, é confortante a sensação de cumplicidade com que aprendemos a enxergar esses companheiros pares de jornada, de emoção ao reconhecer cada uma das marcas de seus rostos tão modificados pelos anos. Chega a parecer que conhecemos a razão da presença de cada uma delas. Quando também somos observados por um velho amigo (sem trocadilho), podemos entregar o livro de nossa vida ao aconchego de uma leitura a dois. Isso é um delicioso brinde à amizade.

Por isso nossa conversa a três puxou para o ácido, lambeu o gosto do amargo, mas voltou gargalhando à doce constatação de que a vida só caminha para a frente. Se mudamos de estágio, se caminhamos com um pouco mais de dificuldade, se trombamos com paredes recém-nascidas, também podemos colecionar conquistas valiosas.

Não podemos saber quando foi a primeira lição de nossa vida, nem onde irá parar a seqüência de nosso aprendizado, mas o que podemos fazer é decidir agora como passar por cada etapa por vir. O convite ao riso é mais atraente, mesmo que ele esteja de bengala.