primeiro
movimento: A VARRIÇÃO
Ainda que fosse cedo
a manhã nada mais poderia
do que protelar névoas noturnas ao longo das coxias,
em cujo leito madrugaram passos dementes
em desafio às ruas que desmanchavam seus rumos.
Já
parece tarde !...
mas nada poderia esperar da tarde
além do pó que fatalmente encobriria seu vulto
de flor resignadamente varrida para além do horizonte.
Agora,
na incerteza de lhe reconhecer em meio ao relevo das nuvens,
baixo a cortina sobre a ilusão da janela:
–
para que, pela evidência do cálice tingido,
dela não perca a única dimensão palpável,
da cela que me abriga à sombra da arribação.
–
Para que as réstias que por ela se arrisquem,
nada mais que o ar risquem
e encerrem no guardanapo a tecedura da neblina.
Ainda
que ou porquê – natureza morta da alma do vinho –
da bandeja recenda a hemorragia do sol sobre o mangue
a degradar-se em sépia exangue
que não mais anuncia primaveras
mas apenas esmaece as cenas
como relíquias do recorte urbano em clichês intermitentes.
E
assim só dou conta do meu trânsito
ao reencontrar-me estendido, na altitude dos estratos,
entre estrias de crepom de um mapa descartável,
sem geografia
e sem coordenadas,
abismado nas coincidências de seus traços com as tramas
do outono.
As mesmas pelas quais me imaginei imune à sazonalidade do viço
deslumbrante
mas que,
na rápida e anônima contramão das calçadas
e dos canteiros tangentes,
urdiram simultaneamente a possibilidade e o pânico
de colher a sua silhueta de perfil indiferente
entre folhas arrancadas de trevos de mal-e/ou-bem-querer
que demarcaram minha trajetória de arribação fugaz,
impregnada pela florescência decomposta do Jardim de Gramacho.
Segundo movimento: A COLETA
Tudo é lixo, tudo é resto !...
Nenhuma
seletividade de tratamento ou coleta
há que diferenciar os resíduos do corpo e da alma,
Já que de ambos o eco lógico e indistinto
prolifera em aguapés sobre o charco da obsolescência.
Quanto
resto se espalha na espera inútil de um novo fim ?!...
E
assim embalsama-se em plástico o sonho...
E assim esvai-se em tinta o pulso das palavras...
De
que adianta à palavra traduzir-se pelo in-verso,
percolando o leito insalubre do olhar decaído em sonhos ao léu,
absorvida no berço esplêndido do papel
que espelha a sua veste escura ?...
De
que adianta ?...
De
que adianta desviar da contemplação ingênua,
o olhar que compôs o domínio da paixão sobre todas
as paisagens
e agora, pela janela que o completa,
arquiva suas horas ainda recentes,
o presente
e o devir
como páginas de um álbum de borboletas,
intercaladas pelo fino filtro da desencarnação?
De
que adianta ?...
De
que outro modo justificar-se-ia
a torpe covardia de interromper a ventura,
antes que a compostagem das fisionomias em revivido cenário
não mais pudesse esquivá-las de ser motivo de constrangimento
?
...ou,
já esgueirando-me entre a mentira e a insânia,
antecipasse o arrependimento à compulsão que o motivaria
?
De
que outro modo justificar-se-ia ?...
terceiro movimento: O TRATAMENTO
E como, nesse abismo inevitável,
recompor-me-ia do delirium tremens,
sob doses homeopaticamente comedidas do seu afeto
que à distância do meu braço se fez vertigem,
tornando-se da síndrome rima-armadilha do abandono a sentença
?
se a implacável lâmina que me aparta da nuvem amorfa capitulada
ao vento
é um mero vidro de escotilha, sobre o qual escorro:
– água sem leito, catando gotas...
a perseguir no peito a imprecisa rota
de serpentes transparentes no difuso éter das gaivotas.
Como
recompor-me-ia ?...
Capitulado
eu, de novo, ao mórbido ritual
de cerzir com artérias os desvarios e as paisagens
e assim crer estar intacto o tecido da miragem
que o bico-de-pena (e pássaro) fere na maciez do guardanapo,
expondo da minha alma o esgarçado invólucro
onde o arrepio de impressões digitais,
grava a memória de palmas qual punhais...
tal
e qual os vapores que lá fora,
são agora a minha integridade,
retalhada a luz e vento.
Mas
amor, desta vez guardo uma glória para lhe contar.
Quiçá um caricato aprendizado da sua magnanimidade.
Nesse
novo vexame afloraram poucas lágrimas,
e nem brotaram da carne trêmula rubros suores
que denunciassem a fratura exposta da paixão.
Todos
os líquidos percolaram o semblante pelas falhas pelas calhas
do seu âmago,
repetindo sutil e sorrateiro chorume
e na fronteira de sua inestancável mancha,
o gume do silêncio...
sobreposto
ao eco das suas palavras qual translúcida nódoa
diluindo-as...
quarto movimento: O ATERRO
De que adianta passos sem rastro pisotear
espernear sobre o aterro mal controlado de uma sina ?...
- Um desperdício da vontade
ante o pulsar terminal de sangue e vida
das vísceras do bicho morto, repartidas
que nem lixo inerte a fazer jus
ao olhar complacente e tedioso de garças e urubus,
vasculhando,
obcecados por identificar os pedaços de seus horizontes perdidos.
Quem
sabe sejam mutantes de fênix descrentes do sonho
e não tenham mais nas alturas ou nas montanhas nenhum deus a
buscar.
Por isso rasam sobre cacos de vidros e metais,
sobre as carcaças dos animais
como que a buscar sinais de carne no que fora território de amantes.
Haveria
na queima do metano alguma borra do buquê das adegas...
a que tinge o mormaço do monturo com o mesmo rouge
com que o pulso apressara a noite pelas nuanças dos seus brilhos
na placidez da lagoa,
no pontilhismo vespertino de lumes,
na incandescente dança dos salões.
Ou
porque, das cinzas sagrado em sangue doce,
sem se perceber transbordado do inútil,
o pássaro de alar restrito a rasteiro céu
se dá conta de que retalhos de foscos cromados
teriam tido em vida o vigor dos trombones que ensurdeceram os bailarinos
e derramaram brilho em suas veias
e em suas oxidadas (de)composições, ainda solfejam boleros
(inter)calando UM CHORINHO PRA VOCÊ em partitura paralela,
onde agora estronda e trela a descontinuidade entre urbe e ânimo.
quinto movimento: A DESTINAÇÃO FINAL
Tão suave quanto a previsível magnanimidade,
aos poucos sedimenta-se na topografia da pele o resíduo da paixão,
do fogo fátuo – a fumaça...
que das cinzas dos signos da cidade ainda recende,
e impregna no verso e anverso do vazio um réquiem
mas sequer nessa dança novamente me abraça.
Por
mais libertas...
Por mais autômatas que buscassem as mãos a curva de um
dorso,
ou os lábios uma fronte onde insinuassem um beijo
todos os movimentos esbarrariam nas grades do olhar.
A
nuca enrijecida entre desdém e desejo
ante a ameaça das mesmas palmas, cada vez mais dormentes,
resumiria a vã procura de um banco de jardim
–
um fim para o desfiar dos dedos aquém das estampas da seda que
lhe vestia...
refém
dos fios de pedra que estreitaram a existência entre mar e morro,
afirmando assim no (des)cartesianismo do entorno,
a lógica do meu confinamento em mais um sumiço
em que penso ! logo não existo,
logo sonho,
logo morro.
Muito
embora novamente
no
arco dos dentes, a entorse dos pontos de fuga das ruas
amarre ao mais próximo gradil a amarga interrogação
que é nossa mais antiga sombra:
E
NÓS ?...
Entorno-me
nos redemoinhos do lixo urbano à procura...