2º CONCURSO DE LITERATURA DA FENAE – LETRAFENAE 2004

Menção honrosa na categoria Contos


Athos Ronaldo Miralha da Cunha (Santa Maria/RS)

 

Picolé premiado

Santa Tecla

 


Após 30 anos de serviços prestados a causa pública, Gomercindo aposentou-se. Proporcional, mas tudo bem não estava incomodado. Estava curtindo a sua primeira semana de “vagabundo”. – dizia sorrindo. Mesclava momentos de felicidade e tristeza. Vivia inquieto diante dos longos dias. Num primeiro momento não sabia o que fazer. Perdido em sua própria casa. Acabara de descobrir um labirinto com peças vastas.

O importante era a companhia dos netos. Viver sem regras e, principalmente, sem horários. Viajar, rever parentes, amigos, enfim, desfrutar a vida era o seu objetivo. Seu salário de “quase feliz aposentado” – como costumava dizer – estava a disposição desse novo “modus vivendi”.

Não exigia muito da vida, apenas saúde e boa visão para leitura dos jornais e ver algum filme na televisão. Gomercindo estava usufruindo o sossego de sua ampla sala de estar, manuseava um livro adquirido no dia anterior. Não era um leitor contumaz, mas saboreava os livros com os cuidados e ritual que a obra literária merecia. Naquela tarde ensolarada de verão estava iniciando a leitura do épico de Érico Veríssimo a trilogia O Tempo e o Vento.

- Picolé premiado! Picolé premiado! – aquela voz vinda da rua chamou sua atenção.
O grito do vendedor de picolés, passando em frente a sua residência, desconcentrou Gomercindo e o transportou para sua infância. Vozes de um passado menino.

Gomercindo era filho de ferroviário. Viveu sua infância e adolescência próxima ao Depósito da Viação Férrea. Ora levando o almoço para o velho João Baptista, seu pai, ou brincando de maquinista na velha Maria-Fumaça.
Todo final de ano, Gomercindo, juntamente com seus irmãos e seus pais, viajava para passar o primeiro do ano com os avós que moravam num vilarejo próximo a Rio Pardo. A viagem durava aproximadamente 12 horas. O sacolejar do trem só era acalmado nas paradas nas estações do caminho. Cada vila tinha seus atrativos e uma delas, a Parada São Pedro, havia um guri que vendia os picolés. - Picolé premiado! Era como o menino que há mais de quarenta anos gritava na carcomida estação São Pedro. E foi o grito eloqüente de “picolé premiado” que abalou a emoção de Gomercindo. E agitou sua calmaria literária.
- Quanta coincidência após tantos anos! – comentou, olhando a esmo por cima dos óculos.
O berro do menino que vendia picolé nunca foi esquecido. Era o grito de guerra da Parada São Pedro. Um menino de sua idade que trabalhava para ajudar os pais. Durante os anos que Gomercindo passou em férias por aquela estação, sempre comprou o “picolé premiado” do garoto trabalhador. Embora nunca tivesse tido a sorte de ganhar um prêmio sequer. O nome do menino também foi guardado com carinho, afinal era uma criança como Gomercindo. Chamava-se Pedro o mesmo nome da estação.
O menino Pedro da Estação São Pedro.
- Pai! Na parada São Pedro, nós vamos comprar um picolé do Pedro. – comentava Gomercindo quando o trem se aproximava da estação. E todos os anos foram assim: na parada São Pedro compravam-se picolés.

Mas em um dado ano, talvez umas das últimas viagens de férias com seus pais, na parada São Pedro, não havia o menino vendedor de picolés. Seu João Baptista perguntou para o Chefe da Estação, interpelou alguns transeuntes, solicitando notícias do Pedro, o menino do picolé premiado e nada obteve de resposta. Ninguém tinha notícias do menino vendedor de picolés. Ele simplesmente não havia mais aparecido. Uma senhora sentada no banco da estação foi ao encontro de João Baptista e falou que o menino juntamente com seus pais haviam se mudado para Porto Alegre. Um outro menino, o engraxate, disse que haviam ido para Santa Maria. Enfim, na parada São Pedro não haveria mais os gritos de “picolé premiado”.

Passados mais de quarenta anos os ecos da infância colocaram Gomercindo apreensivo. Gomecindo sai porta afora ao encontro do vendedor de picolés. Seu espanto foi tamanho ao perceber que o menino em sua frente era o mesmo menino da parada São Pedro. Idêntico, faceiro e sorridente, parecia irmão gêmeo do guri de quarenta anos atrás.
- Quanto é o picolé garoto?
- É R$1,00.
- Vou levar três, todos de morango, para os netos não brigarem.
- Como é o seu nome?
- Meu nome é Pedro seu Gomercindo.
- Como tu sabes o meu nome?
- Ora seu Gomercindo, o senhor comprava picolés na parada São Pedro, não lembra?
- Mas foi há mais de quarenta anos... – comentou Gomercindo, tentando refazer-se do choque diante do inusitado.

- Picolé premiado! Picolé premiado! – foi-se o menino gritando pelas ruas de Santa Maria.

- Vovô! Acorda vovô! O guri do picolé está chegando. Compra picolé pra nós. Vamos, ligeiro vovô.
Entre acordado e dormindo, Gomercindo compra picolés para os netos. Três picolés de morango.
- Bom esse picolé do Pedro, né Vovô?
- O nome do guri é Pedro?
- É. O nome do guri é Pedro, Vovô.