Ney Ruas
“Deves
nunca perder o respeito por ti mesmo nem teres por que enrubescer quando
a sós contigo”.
Gracián, A arte da prudência.
Ivan
Alvedrio era um alto executivo bem sucedido, uma dessas pessoas que
a sociedade convencionou chamar de “homem de bem”. Pagava
seus impostos religiosamente em dia, freqüentava a igreja aos domingos
com a família, não possuía litígio com os
vizinhos, nem brigava no trânsito. Contribuía com grandes
somas para instituições de caridade, era gentil, não
maltratava os subordinados, tinha o respeito e a admiração
da sua comunidade. Milionário, sua fortuna fora construída
pouco a pouco mediante um trabalho dedicado e incansável desde
tenra idade, mas todo esse dinheiro não conseguira proporcionar
a cura de um grave problema de saúde que o afligia, apesar dos
sucessivos gastos com viagens, hospitais, especialistas, exames, diagnósticos
e remédios.
A sua mão direita estava tomada por uma ferida permanente, que
começara alguns anos antes como uma pequena mancha roxa, transformara-se
depois de algum tempo numa espécie de verruga e evoluíra
para uma ferida em carne viva que ocupava a área central da palma
da mão e sangrava constantemente. Há mais de cinco anos
usava uma bandagem para enfaixá-la, que precisava ser trocada
de duas em duas horas porque ficava úmida de sangue. Já
consultara médicos renomados no Brasil e no exterior, ouvira
os mais variados diagnósticos e experimentara diversos tratamentos,
que às vezes resolviam o problema por um ou dois meses, mas depois
o sangramento voltava com mais força. Estava desesperado, achava
que ia morrer em virtude da doença, embora tivesse recursos suficientes
para consultar o especialista mais caro do mundo ou internar-se no hospital
mais sofisticado.
Talvez devido a essa preocupação que lhe martelava a alma,
começou a sonhar com mortes, velórios e enterros. No início,
os sonhos eram espaçados, de dois em dois meses, mês sim,
mês não, mas agora eram semanais e às vezes aconteciam
até em noites seguidas. Os personagens do sonho eram homens e
mulheres, jovens ou velhos e às vezes crianças ainda pequenas.
A situação era sempre a mesma, o caixão aberto,
o cadáver limpo e arrumado, as pessoas ao redor chorando ou rezando.
Depois, parecia um filme sendo rebobinado para trás, via o momento
em que a morte acontecera, um ferimento a bala de onde o sangue jorrava,
o baque surdo do corpo caindo e os olhos sempre arregalados de espanto.
Em seguida tudo se apagava, como nos intervalos para os comerciais de
TV e aparecia uma seqüência de algarismos precedidos sempre
por algumas letras maiúsculas. Das letras nunca conseguia se
lembrar, mas os números eram sempre a parte do sonho mais nítida,
marcante, que incomodava sua memória no dia seguinte e nos demais.
Mudavam as pessoas, os lugares, os rituais, mas permaneciam os choros,
as manchas de sangue, os olhos arregalados de espanto e um intrigante
número no final, então tudo terminava. Acordava com a
boca seca e uma leve dor no peito, com uma renitente angústia
envolvendo o seu coração e esse mal-estar cedia apenas
no decorrer do dia, quando os inúmeros afazeres e as enormes
cifras com que lidava conduziam sua mente para outras preocupações.
A sua indústria multinacional espalhada por todos os continentes
batia todo ano recordes de lucratividade, mas a filial Australiana estava
passando por sérios problemas. Primeiro, foi a campanha de desarmamento
da ONG pacifista, que contribuíra para uma acentuada queda nas
vendas. Depois, o projeto de lei proibindo a fabricação
e a venda de armas no país, que ganhara surpreendente importância
e estivera prestes a ser aprovado. Passara o dia on-line com a Austrália,
contratando lobistas e seduzindo deputados com generosas verbas. No
final do dia, a tendência de aprovação havia sido
revertida, mas a tensão extrema consumira a sua energia, ficara
extremamente cansado e ansioso para dormir.
Estava ao volante do seu Audi preto, aborrecido com o rotineiro congestionamento
na Avenida Antonio Carlos. O trânsito de Belo Horizonte era insuportável
àquela hora da noite, mesmo assim, dispensava o motorista, gostava
de dirigir o potente carro, um dos seus poucos prazeres. Os seguranças
iam num carro atrás, por precaução, mas felizmente
nunca precisara deles. Quando a fila de automóveis empacou novamente
num sinal vermelho, soltou um palavrão e ligou o rádio
para se distrair. Ouviu um barulho do seu lado esquerdo e quando olhou
já deu de cara com a arma encostada no vidro da porta. Um jovem
de dezessete ou dezoito anos, olhos duros e frios rosnou de supetão.
__ Passe a carteira, granfino desgraçado, ou vai morrer agora
mesmo!
Assustou-se automaticamente e o coração disparou. Lembrou-se
então da blindagem do veículo que lhe custara duzentos
mil dólares e acalmou-se. Riu intimamente do seu medo, não
existia a menor possibilidade da pequena arma calibre vinte e dois romper
a sua fortaleza, conhecia profundamente aquela arma, a sua potência,
os seus mecanismos e suas limitações, ela era produzida
na sua fábrica do Brasil há mais de vinte anos e com ela
começara o seu império empresarial.
Despreocupou-se com o jovem e pegou o fone para acionar os seguranças
que haviam ficado retidos no cruzamento. Viu o lampejo de surpresa e
ódio nos olhos do rapaz e logo depois se surpreendeu ele mesmo.
Num gesto brusco e rápido o jovem assaltante abriu a porta do
veículo (percebeu apavorado que se esquecera de travá-la)
e acionou o gatilho três vezes. Três clarões alaranjados,
seu pescoço e seu peito rasgados por uma dor insuportável,
inédita. Depois viu o corpo do rapaz sacudir-se como se estivesse
dançando, tombando em sua direção, os olhos arregalados
de espanto e uma careta de dor. “Malditos seguranças, sempre
atrasados”, pensou. Sentiu-se flutuar, viu seu próprio
corpo, imóvel, seus olhos arregalados, a mancha vermelha espalhando-se
pela camisa branca, impregnando o banco de couro com sua quente umidade,
o jovem debruçado sobre suas pernas, as costas tingidas de vermelho,
os seguranças esbaforidos correndo de um lado para outro como
baratas-tontas. De repente tudo ficou escuro, sem sentido, aparecendo
aos poucos a imagem de algumas letras que não conseguia distinguir
e um número martelando na sua mente, 43477.
Acordou ofegante, sobressaltado, sentou-se na cama e ficou imóvel,
relembrando o sonho e sentiu um arrepio. Pensou em acordar a mulher,
que ressonava tranqüilamente, mas mudou de idéia, a esposa
já não demonstrava mais a mesma paciência para ouvir
seus relatos, estava aborrecida com a rotineira interrupção
do seu sono no meio da noite para ouvir histórias de mortes e
tragédias que não conseguia compreender. Tateou o escuro
com os pés em busca dos chinelos, foi para o escritório
e ligou o computador.
Esse sonho tinha sido diferente, o morto era ele próprio, tudo
parecia real e ainda sentia a sensação dos projéteis
rasgando a sua carne, empurrando o seu corpo para trás, lembrava-se
do rapaz tombando sobre suas pernas e o seu grito de dor ainda lhe feria
os ouvidos. Aquele número acendera um alarme na sua memória,
precisava averiguar se aqueles algarismos tinham alguma conexão
com a realidade, a sua realidade.
Ficou imóvel por alguns minutos, tentando lembrar-se da senha
que permitia o acesso remoto ao banco de dados da sua fábrica.
Fazia muitos anos que abdicara de conduzir o dia a dia da produção,
ocupava-se agora só dos grandes negócios. Gostava de se
sentir poderoso, tratava apenas com grandes empresários, ministros,
generais e os altos escalões de autoridades dos diversos países
que desejavam adquirir lotes de armas da sua indústria.
Lembrou-se do código de acesso, conectou-se ao sistema e logo
tomou conta da tela o logotipo da empresa, onde se lia “Companhia
Brasileira de Tecnologia em Armas”, nome que o marketing das agências
de publicidade conseguira firmar como referência no mercado de
armamentos utilizando-se da sigla CBTA.
Apanhou o pequeno bloco de anotações na sua pasta e escreveu
o número com o qual acabara de sonhar, assim como fizera com
todos os outros anteriores. Não sabia bem porque, anotara todos
eles. Inicialmente pensara em utilizá-los para jogar na loteria,
mas nunca colocara a idéia em prática, foi simplesmente
acrescentando os números que já haviam preenchido cinco
páginas do pequeno bloco.
Acessou o banco de dados e resolveu fazer uma experiência que
lhe ocorrera momentos antes. Logo que acordara sobressaltado do pesadelo,
as recordações e imagens do sonho cederam lugar a um pensamento
que antes não lhe ocorrera, mas agora ganhava força. Aqueles
números que sempre apareciam como a “última cena”
dos seus sonhos provavelmente possuíam alguma relação
com ele, alguma ligação, alguma conexão. Estava
ficando louco com esses malditos sonhos e precisava descobrir alguma
coisa, um fato qualquer que permitisse o elo com o seu subconsciente
para desvendar o enigma. Assim, a primeira idéia que lhe ocorreu
foi procurar esse número na sua fábrica. Vivera o maior
período da sua vida nos limites da sua fábrica, por diversas
vezes chegara a dormir por lá mesmo, até poucos anos antes
saía de casa todos os dias muito cedo, quando a mulher e os filhos
ainda estavam dormindo e retornava muito tarde, quando também
já estavam na cama. Mudara de hábitos apenas recentemente,
quando um atropelamento colocou o seu filho caçula entre a vida
e a morte. A espera na UTI do hospital, enquanto os médicos faziam
a cirurgia diagnosticada como de alto risco, a impotência diante
dos acontecimentos, o choro convulsivo da esposa, desesperada e abatida
pelo sofrimento, tudo isso fora marcante, um divisor de águas
na sua vida. O garoto restabeleceu-se rapidamente e voltou à
sua rotina habitual, mas ele próprio não conseguiu voltar
à sua antiga rotina. A iminência da perda, as longas horas
ociosas caminhando de um lado para outro no pátio do hospital
obrigaram-no a uma atividade à qual não estava acostumado,
refletir sobre sua própria vida. Percebeu angustiado que não
podia controlar todas as coisas, não controlava o crescimento
das crianças nem o contínuo distanciamento delas em relação
a ele, um pai presente apenas por telefone. A serena resignação
da mulher, que não o questionava mais quando seguidas vezes chegava
em casa depois da meia-noite, após rotineiros jantares de negócios.
A sua família aceitava tacitamente a sua presença em casa,
tinha o seu lugar como membro daquele lar, mas no fundo era um completo
estranho a eles, não sabia como os filhos iam na escola, como
estava a sua saúde, as suas companhias ou as preocupações
da esposa. Desde aquele dia no hospital, mudara radicalmente de hábitos.
Passou a almoçar em casa todos os dias, saía mais tarde
e chegava mais cedo. Mas o tempo que dispensara àquela indústria
ao longo dos anos tinha absorvido a maior parte da sua existência,
por isso, se aquele número possuía alguma relação
com a sua vida, o primeiro local onde deveria ser procurado era nos
arquivos da sua fábrica.
Entrou na ferramenta de busca do programa e digitou os algarismos 43477.
Esperou ansioso por alguns instantes e logo o resultado apareceu na
tela. Sem conseguir conter a curiosidade, começou a ler avidamente
as informações e, enquanto lia, ia arregalando os olhos.
Ao terminar, esmurrou a mesa com a mão direita, esquecendo-se
por completo do ferimento, que imediatamente tingiu de sangue a bandagem
que a enfaixava, obrigando-o a ir até o banheiro para substituí-la.
Feita a troca, retornou, ansioso, e se postou novamente na frente do
vídeo, de onde não conseguia desgrudar os olhos. A informação
mostrada na tela construía uma ponte que finalmente poderia conduzir
ao significado daquela repetição de sonhos que tanto absorviam
as suas noites desde muito tempo. A resposta exibida não deixava
dúvidas, tratava-se de uma arma produzida na sua fábrica.
“Modelo 1A, calibre 22, ano de fabricação 1980,
lote 1614, adquirida por Casa de Armas Peçanha em fevereiro de
1981, Nota Fiscal 145316”.
Foi até a cozinha e tomou sofregamente um copo d´água,
a boca ficara seca e amarga com a surpresa. Voltou ao escritório
e ficou sentado diante do computador, ereto e imóvel, olhos fixos
na mensagem exibida, olhava mas não via nada, seus pensamentos
estavam agitados, frenéticos. Ocorrera-lhe algo surpreendente,
mas de uma lógica inabalável. Se o número nitidamente
impresso na sua memória pelo sonho era também o número
de série gravado no aço daquela arma, tornava-se evidente
quais eram as letras que sempre acompanhavam os algarismos em todos
os pesadelos, mas das quais nunca conseguia se lembrar com clareza.
A conexão que acabara de fazer entre um fato e outro tirava um
véu das suas lembranças e as letras já saltavam
na sua memória, nítidas, claras e ostensivas. Percebia
agora que elas nunca mudavam, eram sempre as mesmas, “CBTA”.
A sigla da sua indústria acompanhava os números de série,
eram a marca de qualidade que fazia questão de imprimir em todas
as armas para diferenciá-las da concorrência.
Apanhou o pequeno bloco, selecionou aleatoriamente com o dedo um dos
números anotados e digitou no computador. Esperou alguns segundos
e a tela estampou irremediavelmente outro número de série,
desta vez o “modelo 7A, calibre 38, lote 2317, adquirida por Plantão
Empresa de Segurança Ltda, Nota Fiscal 343817”. Digitou
outro número da lista, depois vários outros, até
que as mãos trêmulas deixaram cair o pequeno bloco de anotações.
Todos os números se referiam a revólveres, pistolas, fuzis,
metralhadoras, granadas, morteiros e mísseis, todas as modalidades
de armas que já produzira, desde as mais simples até as
mais sofisticadas, de destruição em massa.
Desligou o computador e as pernas bambas guiaram-no como a um robô
até o pequeno sofá. A testa estava molhada de suor, os
lábios sem cor acentuavam a palidez do rosto, a mão direita
doía insuportavelmente, fora do padrão com o qual já
se acostumara a conviver. Mas havia outra dor que o incomodava ainda
mais, lhe feria mais fundo naquele momento. Vinha do seu peito, do lado
esquerdo, pelo menos assim lhe parecia. Sabia, no entanto, que tinha
um coração de atleta, pressão sanguínea
normal e estável, nada que indicasse um princípio de infarto
ou algo parecido. Era uma dor profunda, que vinha de dentro, não
tinha origem física, apesar de doer-lhe até os ossos e
entrecortar sua respiração.
Voltou taciturno para o quarto de dormir, mas não conseguiu fechar
os olhos um minuto sequer. Levantou-se muito cedo e mal conseguiu ingerir
um copo de leite frio, sempre com os olhos distantes e os pensamentos
em turbilhão. Vestiu o paletó e saiu acelerado, sem saber
ao certo o que fazer, ligou o carro e desligou-o em seguida, interrompendo
a marcha a ré que iniciara para tirá-lo da garagem. Tinha
dúvidas, estava confuso, mas lhe ocorreu que se os números
eram reais talvez os personagens dos sonhos também fossem e lembrou-se
nitidamente do rapaz apertando o gatilho e do projétil rasgando
seu pescoço.
Resolveu ir até um cemitério, sabia que existia um nas
proximidades e dirigiu-se para lá. Pôs-se a andar entre
túmulos e lápides, verificando nomes e datas, mas logo
desistiu, não lhe diziam nada.
Nos seus sonhos não apareciam nomes, apenas números, rostos
e imagens. Procurou lembrar-se de alguma imagem que pudesse trazer um
vínculo qualquer com uma das milhares de lápides daquele
lugar mas seu esforço foi em vão, nada acrescentou.
Voltou para o automóvel e seguiu até o escritório,
instalado no vigésimo andar do luxuoso edifício com fachada
de vidro fumê, sede administrativa da empresa. De lá, tinha
uma magnífica vista da cidade com a serra do curral emoldurando-a
ao fundo, mas nunca se dera ao luxo de parar cinco minutos nos seus
afazeres para apreciar a paisagem. Entrou apressado e deu ordens à
secretária para não ser incomodado, cancelou todos os
compromissos da semana ou transferiu-os para alguns subordinados. Refestelou-se
na poltrona atrás da imensa mesa de mármore e tentou colocar
em ordem os pensamentos que insistiam em fugir do padrão metódico
e organizado aplicado em todas as suas atitudes. Refletiu por duas horas
sem que fosse interrompido e conseguiu acalmar-se, delineando na cabeça
uma forma de verificar a porção de realidade dos rostos
que freqüentavam seus sonhos. Pegou o telefone e ordenou à
secretária que localizasse o seu advogado, precisava falar com
ele, urgente. Meia hora depois o advogado entrou na sala, suado e tenso,
habitualmente reunia-se com diretores, gerentes e outros executivos
da empresa, raramente encontrava-se com o presidente, embora já
se conhecessem há muito tempo.
__ Bom dia, doutor Ivan, vim o mais depressa que pude.
__ Bom dia, Aristides, há quanto tempo não o vejo. Como
vai a família?
__ Bem. Meu filho mais velho casou-se recentemente.
__ Meus parabéns, sei como você preza a sua família
e confesso que gostaria de ter sido mais dedicado à minha. Hoje
estou tendo dificuldades para recuperar o tempo perdido, meus filhos
vêem em mim um estranho.
__ Não diga isso, o senhor sempre foi um pai responsável.
__ Bem, não importa agora. Chamei-o aqui porque preciso que faça
algo para mim. Mas devo lhe pedir para não fazer perguntas sobre
o meu objetivo, é algo pessoal e muito importante. Sei que você
é bem relacionado na polícia e tem também muitos
amigos no judiciário. Isso tornará fácil a sua
missão.
__ É verdade, tenho bons contatos.
__ Pois bem. Quero que você me traga a cópia de cinqüenta
processos envolvendo casos de mortes por arma de fogo. De preferência
acontecidos nos últimos quinze anos, não importa a idade,
sexo ou condição econômica das vítimas. Apenas
um detalhe é importante, que a arma do crime tenha sido identificada
e que conste nos autos o seu número de série.
__ Mais algum detalhe? __ Perguntou, interrompendo a anotação.
__ Sim, preciso disso com urgência, dá para me entregar
amanhã?
__ Creio que sim, vou fazer o possível.
__ Ótimo, gaste o que for necessário, isso é uma
prioridade para mim. E mantenha o sigilo como é nosso hábito.
O advogado saiu apressado, já empenhado na nova missão,
deixando para trás o patrão pensativo e estático,
olhos vidrados no infinito. Imerso na confortável poltrona, dedos
entrelaçados sobre a mesa, o cenho franzido, imóvel e
impenetrável. Por fim, moveu-se lentamente e ligou o computador.
Digitou novamente o número 43477, do seu recente pesadelo, para
certificar-se de que os últimos acontecimentos eram reais e não
parte de outro sonho. Mal terminou de inserir os algarismos e a resposta
se repetiu, “Modelo 1A, Calibre 22, ano de fabricação
1980, lote 1614, adquirida por Casa de Armas Peçanha em fevereiro
de 1981, Nota Fiscal 145316”. Buscou em seguida os dados da Casa
de Armas Peçanha, um dos seus primeiros clientes e anotou o endereço,
localizado num bairro da periferia. Dobrou o papel e enfiou-o no bolso,
apagando em seguida a tela do computador.
Preferiu ir de táxi, anônimo, sem o séqüito
de seguranças atrás. A casa de armas ficava numa região
comercial do bairro, rodeada por bares, restaurantes, mercearias e pequenas
lojas de roupas populares. Pediu ao motorista que o aguardasse, entrou
na loja e algo no ambiente lhe pareceu familiar. Com certeza, era a
lembrança de um passado já distante, da época em
que gastava sola de sapato, visitando todos os comerciantes de armas
para apresentar, pessoalmente, os novos modelos produzidos pela sua
indústria, que ainda engatinhava nos primeiros passos, com apenas
uma dúzia de empregados.
Esperou o atendente atrás do balcão terminar a venda de
uma pequena arma para um jovem. Enquanto isso, ficou observando os modelos
de revólveres e pistolas expostos no balcão com tampo
de vidro, percebendo com satisfação que naquele ponto
da cidade, assim como em boa parte do país e em diversos lugares
do mundo, a CBTA transformara em pó a ameaça da concorrência.
O rapaz terminou o atendimento e voltou-se para ele.
__ Posso ajudá-lo, senhor?
__ Sim, gostaria de falar com o dono...
__ É o meu pai, José Peçanha. Está no escritório,
lá em cima. __ Apontou a sobreloja.
__ Sou Ivan Alvedrio, da CBTA, seu melhor fornecedor. Pode chamar o
seu pai?
__ É claro, um momento.
Chegou com o pai, um velho calvo de bochechas rosadas. Demonstravam
um ar de surpresa, curiosidade, e afetada reverência pelo visitante
ilustre.
__ Senhor Ivan, há quanto tempo...Mas creio que não se
lembra mais de mim, há tempos vem aqui apenas o seu representante
de vendas.
__ Não diga isso, seu José. É claro que me lembro
do senhor, um dos meus primeiros clientes. __ Mentiu com naturalidade
e percebeu o brilho de satisfação nos olhos do comerciante.
__ A que devo essa visita tão inesperada e honrosa, senhor Ivan?
__ Preciso da sua ajuda. Quero montar um museu com as primeiras armas
que fabriquei. Sabe como é, está chegando a hora de me
aposentar e já estou pensando em algumas coisas para fazer. É
uma calibre 22, vendida para você em 1981. Gostaria de saber o
seu paradeiro.
__ Vamos ver, vamos ver. Tem o número de série?
__ Sim, aqui está. __ Mostrou o papel com a anotação.
__ Tenho tudo arquivado, como é de costume. Um momento e já
volto com sua informação.
Permaneceu em pé, pescoço ereto, olhos fixos na porta
por onde desaparecera o velho. Começava a acreditar que encaixaria
algumas peças de um enigmático quebra-cabeças,
mas não tinha a menor idéia sobre a imagem final que seria
formada.
O velho voltou com uma pequena ficha de papel duro, empoeirada e amarelada
pelo tempo. Transcreveu os dados do comprador para um pedaço
de papel, anotou o endereço e entregou-o com um sorriso de satisfação.
Ivan Alvedrio bendisse a sorte, o comprador da arma era outro comerciante
do bairro, dono de uma padaria ainda existente, localizada alguns quarteirões
adiante. Agradeceu efusivamente o velho, dando-lhe um abraço.
Tirou do bolso algumas notas de cem reais e entregou-as ao rapaz, que
inicialmente as recusou mas reconsiderou o gesto após o olhar
de consentimento do pai.
Achou sem dificuldades a padaria, ficava numa área menos movimentada
do bairro. A fachada estava suja e descascada, as marcas de refrigerante
e cerveja estampadas em grandes placas de metal carcomidas pela ferrugem
e alguns buracos que pareciam feitos a bala. Entrou no recinto e se
dirigiu ao caixa onde um homem de cabelos brancos e barba por fazer
lia um jornal enquanto equilibrava um enorme cigarro de palha no canto
da boca.
__ Boa tarde. Procuro o senhor Gregório, por acaso é o
senhor?
__ Sim, sou eu. Do que se trata?
__ Venho recomendado por José Peçanha, da casa de armas.
É um assunto particular, pode me dar um minuto?
__ Sim.
__ Sou Ivan Alvedrio, fabricante de armas. O senhor adquiriu da Casa
de Armas Peçanha há alguns anos uma pequena arma calibre
22 de minha fabricação, que tenho interesse em colecionar.
Posso pagar bem por ela, ainda a tem?
__ Eu a vendi quatro anos atrás para um amigo, morador aqui do
bairro.
__ Sabe onde mora?
__ Morava. Morreu há dois anos. Era empregado daquela fábrica
de sapatos __ Apontou com o queixo um grande galpão do outro
lado da rua, com aspecto de abandono, paredes pichadas e sujas.
__ O que aconteceu com a fábrica?
__ Endividou-se e foi tomada por um banco que demitiu todo o pessoal.
__ Do que ele morreu?
__ De cirrose ou infarto, não sei bem. Não achou mais
emprego e passou a beber demais. Morreu com quarenta e sete anos e deixou
apenas uma casa para o filho.
__ Era viúvo?
__ Era.
__ Então a arma deve estar com o rapaz...
__ Sim, está, mal o pai morreu ele largou os estudos e convidou
dois amigos para morar com ele.
Temo pelo seu futuro, os colegas não são boa gente. Quando
vem aqui, pergunto o que anda fazendo, se está procurando emprego.
Ele diz que sim, mas tenho minhas dúvidas.
__ Gostaria de procurá-lo e comprar-lhe a arma. Pode me dar o
seu nome e endereço?
__ Chama-se Davi. Mora três ruas abaixo, ao virar a esquerda é
a primeira casa do lado de cá, tem um pé de jabuticabas
na frente e parte do muro está caída, foi atingida por
um caminhão desgovernado. Não tem como errar.
Agradeceu e despediu-se. Achou facilmente a casa, mas cansou de bater
palmas e gritar “ó de casa” sem que aparecesse alguém.
Resolveu ir embora e voltar no dia seguinte.
Decidiu ir direto para casa, não estava com ânimo para
encarar a rotina de trabalho, atender telefonemas e tomar decisões.
Sua cabeça estava totalmente tomada pelo novo assunto, suas energias
estavam canalizadas para esclarecer de vez o significado dos seus sonhos,
não possuía ânimo para mais nada naquele momento.
Enquanto o táxi deixava para trás a paisagem empobrecida
pelos viadutos transformados em cortiços, Ivan Alvedrio repousava
o pescoço no banco traseiro e de olhos fechados revivia alguns
dos seus últimos pesadelos. Percebia nitidamente os choros, as
lágrimas e, estranhamente, tinha a noção exata
da localização dos buracos de bala no corpo do cadáver,
às vezes um único, às vezes vários e ocasionalmente
sentia no seu próprio corpo a dor e o impacto do chumbo rasgando
tecidos e músculos.
O carro parou na porta da sua casa e ele desceu mudo e circunspecto,
ombros caídos e gestos lentos, sentia-se exausto. Tirou uma nota,
pagou o motorista e sem responder ao agradecimento virou as costas e
entrou na residência, cumprimentando mecanicamente com um aceno
de cabeça o jardineiro e os vigias que o olhavam surpresos. A
esposa também se surpreendeu com a sua presença em casa
àquela hora do dia e quis saber o que tinha acontecido. Respondeu
que estava com dor de cabeça, um pouco cansado e queria descansar.
Ela aquiesceu sem retrucar, embora as sobrancelhas franzidas denunciassem
sua estranheza diante do fato inesperado e pouco habitual. Não
se lembrava de nenhuma vez em que o marido viera para casa durante o
expediente, no meio da tarde, a não ser em emergências
como doença das crianças ou numa ocasião em que
houve um princípio de incêndio na casa.
Tomou um banho, trocou de roupa e tentou ler um livro para relaxar,
mas depois de cinco minutos chegou à conclusão de que
era impossível concentrar-se na leitura. Ficou deitado de costas,
olhos abertos fixos no teto, imagens da sua vida se desenrolando na
memória, como se fossem de outra pessoa, tão estranhas
lhe pareciam no momento. A primeira fábrica, o primeiro milhão,
o primeiro contrato internacional, o primeiro canhão, o primeiro
míssil, a multiplicação das suas indústrias,
o poder de decidir, muitas vezes, o lado vencedor em uma guerra. Adormeceu
com esses pensamentos e sonhou com grandes batalhas, exércitos
inteiros empunhando armas da CBTA dizimando-se mutuamente sob o fogo
cruzado.
Acordou só no dia seguinte e foi logo cedo para o escritório.
Sem conseguir conter a ansiedade ligou para o advogado, queria notícias
sobre o andamento das pesquisas nos processos criminais. O advogado
tinha conseguido os processos e meia hora depois irrompeu na sala com
dois ajudantes carregando uma dezena de caixas.
__ Está tudo aí como pediu, doutor Ivan, cópias
de cinqüenta processos.
__ Tem o número de série das armas?
__ Sim, verifiquei todos pessoalmente. Referem-se a mortes por variados
motivos, sempre por arma de fogo cujo número de série
consta no processo.
__ Excelente. Como sempre, fez um ótimo trabalho.
Esperou que se retirasse, fechou a porta e debruçou-se avidamente
sobre as caixas. Retirou um processo e começou a folheá-lo.
Não era advogado, mas, executivo experiente, entendia com facilidade
a linguagem jurídica. Era sobre um assalto à Caixa Econômica
Federal da Rua Tupinambás que ocorrera três anos antes,
lembrava-se da notícia publicada com estardalhaço nos
jornais, acontecera um grande tiroteio. Um cabo da polícia de
trinta e seis anos e um jovem de apenas dezessete, mortos a bala. Continuou
folheando o processo e deparou-se com a foto das armas envolvidas, todas
fabricadas pela CBTA. Sentiu um aperto no coração, mas
continuou a leitura, as mãos trêmulas e a boca amarga.
Escreveu o número de série num pedaço de papel
e apanhou o bloco onde relacionara os números com os quais vinha
sonhando todos aqueles anos. Esticou o dedo indicador e foi conferindo
número por número com extrema ansiedade, olhos arregalados
e atentos.
Ao chegar à terceira página, sentiu um estremecimento,
estava lá o número idêntico ao da arma com a qual
o policial tinha sido morto. Continuou a busca e duas páginas
depois encontrou também nas suas anotações o número
de série da arma com a qual um dos policiais liquidara o jovem
assaltante. Aquilo significava que os personagens daquele processo já
haviam freqüentado os seus pesadelos, embora em ocasiões
diferentes, como demonstrava o intervalo de duas páginas entre
as anotações. Ocorreu-lhe que, realmente, só sonhava
com um número de cada vez e esse número nunca se repetia.
Isso significava que cada sonho dizia respeito a uma arma diferente,
embora alguns deles mostrassem mais de uma vítima, outros mostravam
até dezenas de vítimas, indicando a possibilidade de tratar-se
de uma arma de grande porte.
Continuou folheando o processo, esperando encontrar algum detalhe que
o fizesse lembrar-se dos respectivos sonhos envolvendo aqueles personagens.
A mão doía insistentemente, a atadura estava úmida
de sangue e precisava ser trocada, mas a ansiedade falou mais alto e
não quis interromper sua busca. Ao deparar-se com a fotografia
do policial estendido no chão com uma mancha de sangue cobrindo
todo o peito, a lembrança veio como uma bofetada. Lembrou-se
de um dos seus sonhos, o velório, a salva de tiros da corporação,
o choro convulsivo da mulher jovem e pálida, o casal de adolescentes
de olhos vermelhos e úmidos que pareciam não entender
o que estava acontecendo.
Passou rapidamente para a página seguinte e viu a foto do jovem
caído numa poça de sangue, a arma empunhada firmemente
na mão direita como se recusasse largá-la mesmo diante
da morte, os olhos arregalados de espanto, surpreso por encontrar o
seu fim naquele tiroteio. Recordou-se da cena de outro velório
num barracão simples do morro, meia dúzia de mulheres
jovens e chorosas, uma velha senhora com olhos fundos e tristes segurando
um pequeno rosário e pronunciando orações enquanto
as demais repetiam, o jovem num caixão simples, mas repleto de
pétalas, um cachorro esquálido deitado no canto do cômodo,
observando com olhos curiosos o que se passava. Depois, um número
fechando a cena, o mesmo número, agora sabia, que estava grafado
na arma que trouxera consigo o fim trágico daquele jovem.
Ivan Alvedrio fechou com veemência o processo e correu até
o banheiro. Sentiu vontade de vomitar repetidas vezes, mas conseguiu
se controlar. Sentiu-se fraco, por isso sentou-se ali mesmo e escorou
as costas no azulejo frio, encolheu as pernas, abraçou os joelhos
e apoiou a cabeça nos braços, fechando os olhos em seguida.
Ficou ali sem saber por quanto tempo, depois se levantou cambaleante
e apoiando-se nas paredes voltou para a sua sala.
O processo seguinte era sobre uma briga de trânsito ocorrida anos
antes na Avenida Afonso Pena. Um incidente simples e corriqueiro que
acabara em tragédia, a morte estúpida de um motorista
de táxi por um representante comercial, “calmo e cordato
e sem antecedentes criminais”, segundo o depoimento dos vizinhos.
Folheou os depoimentos, checou o número de série da arma
com o seu bloco de anotações (estava lá!) e procurou
as fotos da vítima. Ao ver o rosto vermelho e a barba emaranhada,
a cabeleira ruiva e farta, localizou a imagem na sua memória.
O caixão sendo fechado pelos filhos e baixado à sepultura,
a esposa jogando o primeiro punhado de terra, os choros e as velas,
depois os taxistas saindo em carreata até o centro da cidade.
O próximo caso era sobre uma menina de seis anos de idade, a
pequena Tânia. A tragédia se dera no bairro Santa Tereza,
numa manhã de domingo. Ela estava brincando na calçada,
enquanto o tio, um jovem de vinte e três anos, conversava com
um amigo, advogado recém formado, em frente ao portão
da casa. Um automóvel virou a esquina em alta velocidade e abalroou
a lateral do carro estacionado no meio fio, pertencente ao jovem advogado.
Passado o susto, os dois decidiram perseguir o motorista infrator, que
simplesmente fugira sem dar satisfações. O rapaz colocou
a sobrinha e o irmão menor dentro do carro do advogado e saíram
ambos em perseguição ao fugitivo, que em certo momento
desceu do carro e deu três tiros no veículo dos perseguidores,
acertando em cheio a menina que estava no banco de trás. Ivan
Alvedrio fechou os olhos e relembrou a imagem do rostinho sereno e imóvel,
os olhinhos fechados como se estivesse dormindo, os familiares desesperados,
as lágrimas, as lágrimas, as lágrimas...
Teve forças ainda para vasculhar mais três processos, uma
morte numa briga de bar, um latrocínio numa pequena farmácia
de bairro e uma grande briga entre traficantes rivais em que as metralhadoras
e os fuzis da CBTA cuspiram fogo durante a noite inteira, acionadas
por guerreiros ainda sem barba no rosto. Ao amanhecer, o morro estava
tingido de silêncio e vermelho, com uma dezena de corpos de jovens
entre quatorze e vinte e um anos, esparramados e imóveis, em
meio ao sangue e as cápsulas vazias.
Devolveu todos os processos para as caixas e lacrou-as diversas vezes
com barbante e fita adesiva, temendo a própria curiosidade. Sabia
que se continuasse vasculhando aquelas páginas repletas de horror
e morte estaria acionando uma espécie de “índice”
das imagens de mortes e velórios gravadas em sua memória
pelos sonhos arquivados ao longo dos anos. E agora, as cenas que até
então não faziam sentido algum e o pressionavam apenas
para uma busca de explicação devido à habitual
reincidência, adquiriam um significado mais do que evidente, a
mensagem era clara. Ele, Ivan Alvedrio, o dono da CBTA, era co-participante
de todos aqueles assassinatos, viabilizara a existência daquelas
armas, possibilitando que elas chegassem naquelas mãos criminosas
para finalizar várias vidas, seu dedo era o dedo invisível
que apertava o gatilho junto com os assassinos. Não queria folhear
mais processos nem relembrar as imagens e os choros dos familiares,
sentia-se como um parente do morto, a dor da perda, o desespero, freqüentemente
acordava dos sonhos com o gosto salgado das lágrimas nos lábios.
Ao lembrar-se, a sensação era a mesma, a sua memória
guardava não apenas as imagens, mas também os sentimentos.
Isso o angustiava, não queria passar por tudo de novo, principalmente
agora que a sua consciência estava ávida por cobrar uma
fatura da qual até então ele nem imaginava ser devedor.
Guardou as caixas de processos no fundo do armário e o trancou
a chave. Estava trêmulo e com a boca seca, por isso sentou-se
para tomar um gole d´água e colocar os pensamentos em ordem.
Finalmente decodificara aquele enigma que há tanto tempo era
a prioridade dos seus pensamentos e das suas energias. Mas a compreensão
do fato não trouxera consigo o alívio. Pelo contrário,
o impacto tinha sido devastador no seu íntimo, o seu coração
se apequenara, seus objetivos de antes, a senda pelo poder e pelo sucesso
que empreendera como alvo número um da sua existência parecia-lhe
agora inócua e sem sentido. As visões daquelas mortes
trágicas e estúpidas pesavam nos seus ombros, sentia um
fardo a enrijecer-lhe as costas, um fardo do qual jamais poderia se
livrar. Esse pensamento fez com que se sentisse mais velho e teve vontade
de chorar como uma criança.
Recordou-se do pai, já falecido, e de uma conversa que tivera
com ele ainda quando adolescente, uma época em que sentia uma
inabalável certeza de que seria rico, famoso, um vencedor custasse
o que custasse, para não passar pelos apuros financeiros habituais
na vida do seu pai, um abnegado professor de filosofia para quem o dinheiro
não tinha importância alguma. O pai sempre encarava com
naturalidade e irritante bom humor as pressões dos senhorios
pelo aluguel atrasado, não se aborrecia com a mesa regrada e
fazia troça das diversas carências materiais que a família
suportava, como se fossem algo inevitável. Discordava do pai
e jurara para si mesmo que, quando adulto, jamais seria inquilino de
alguém, pelo contrário, tinha certeza de que estaria na
posição de senhorio, seria rico e nunca passaria por privação
de qualquer natureza. A imagem sorridente do pai encheu sua memória
e sentiu saudades dele como nunca acontecera antes, até da sua
ingenuidade e invariável boa fé diante dos outros, atitudes
que ele jamais adotara na sua vida por temor de que acontecesse com
ele os mesmos reveses que o pai sofrera por acreditar demasiadamente
nos bons sentimentos das pessoas. Lembrou-se da vez em que chegara irritado
da escola, tinha sido ridicularizado pelos colegas que haviam implicado
com o seu sobrenome “engraçado e estranho”. “Alvedrio,
Alvedrio, cara de pavio, de pavio”, era a cantilena diária
da qual não conseguia se safar, mais bravo ficava, mais o atentavam.
Questionou o pai sobre o motivo de lhe ter colocado um sobrenome tão
esquisito, nem era o sobrenome da família, nunca ouvira aquele
sobrenome nem na família do pai nem na família da mãe,
enfim, só lhe trazia desconforto e constrangimentos. Ele calmamente
lhe respondera que “mais importante que a tradição
do sobrenome era o seu significado. Alvedrio significava vontade própria,
livre-arbítrio, a faculdade que Deus nos deu para fazer o que
quiser das nossas vidas e colher os frutos ou as ervas daninhas que
nossas ações semearem”. Recordou-se da raiva que
sentiu na ocasião, não entendera nada e atribuíra
a atitude do pai a mais uma das suas esquisitices. Agora lhe ocorrera
que os seus sonhos com as mortes poderiam ser uma mensagem que o pai
novamente lhe enviava de onde quer que estivesse, talvez querendo lhe
dizer que naquelas mortes ele, Ivan Alvedrio, tinha o seu quinhão
de responsabilidade.
Estava mudado, sentia-se inquieto, concluía que a sua riqueza
fora construída mediante trabalho honesto, mas jamais refletira
sobre as conseqüências da sua atividade, nunca se sentira
culpado, achava sempre que a responsabilidade era somente de quem fazia
uso da arma, lavara sempre suas mãos. Percebia agora que a sua
função era ceifar vidas humanas, da sua forja saíam
os instrumentos da morte dos quais os assassinos se serviam e esse pensamento
o repugnou. O passado não tinha volta, o que estava feito, estava.
Mas sentia no seu íntimo que de forma alguma poderia continuar
sua vida como se nada tivesse acontecido, continuar com os seus negócios,
suas armas brotando diariamente aos bilhões em todo o mundo,
as suas fábricas como oficinas macabras das quais a morte se
servia para viabilizar sua obra.
Tinha uma dívida com o destino, recebia essa mensagem clara que
estava sedimentada em algum recanto do seu ser, nas profundezas da sua
alma, não restava nenhuma dúvida de que a sua vida se
sustentara até então sobre um pântano, uma areia
movediça em que estava afundado até o pescoço.
Precisava estabelecer novas bases para sua existência, começar
a resgatar um débito que sabia imenso, logo ele, que jamais contraíra
empréstimos de qualquer natureza.
Iniciou mentalmente um inventário dos seus bens, mas desistiu
logo em seguida, era impossível catalogar na memória todo
o seu império, que se multiplicava diariamente. O seu batalhão
de procuradores cuidava de tudo de forma autônoma, de acordo com
as mais respeitadas práticas empresariais. Sabia, no entanto,
que a sua fortuna daria para sustentar várias gerações
da sua família de maneira confortável e sem percalços
materiais, e ocorreu-lhe de súbito que era uma idiotice preocupar-se
com dinastias futuras que ainda seriam geradas e chamar para si a responsabilidade
do seu sustento. No entanto, a sua família, esposa e filhos,
eram sua preocupação inicial, sobre eles respingaria as
conseqüências das ações que pretendia tomar.
Pretendia resguardá-los ao máximo, mas sabia que era impossível
preservá-los de sofrimentos e pressões.
Chamou a secretária e pediu que telefonasse ao advogado. Estava
com fome e pediu um lanche, não iria almoçar em casa.
Recostou-se na poltrona e ficou pensando no que fazer. Construíra
sua vida como se constrói uma casa, com planejamento, suor no
rosto e anos de sacrifícios, tornando-a maravilhosa por fora,
como projetada desde o início. Depois de pronta, no entanto,
descobrira que o alicerce estava podre, as fundações precárias
obrigando-o a demoli-la tijolo por tijolo.
O advogado chegou e encontrou um Ivan Alvedrio refeito, cabelo penteado
e rosto impassível, sem nada que denunciasse o abatimento e angústia
de horas antes.
__ Senhor...? __ Questionou preocupado, sem entender novamente o motivo
da sua presença ali, percebendo, entretanto, pelo ar grave do
interlocutor a importância do assunto a ser tratado.
__ Olá, Aristides, sente-se. Escute, vou precisar de você
integralmente de agora em diante e vou abrir meu coração
sobre um assunto de extrema importância, que vai mudar significativamente
a minha vida. Percebo agora que a minha confiança em você
é desproporcional ao seu cargo na empresa, a sua fidelidade a
mim durante todos esses anos nunca foi devidamente recompensada, mais
um de meus erros...
__ Não diga isso, doutor Ivan. Sustentei minha família,
eduquei meus filhos à custa da CBTA. Sinto-me recompensado.
__ Bem, o que importa é que esse erro eu ainda tenho como reparar.
Mas no momento eu peço que preste bastante atenção
no que vou lhe contar. Será a primeira pessoa a saber e depois,
apenas minha mulher e meus filhos tomarão conhecimento. Já
lhe contei sobre o meu medo de morrer por causa desse sangramento, mas,
como você vê, tirando essa doença, minha saúde
está excelente...
Ivan Alvedrio continuou o relato sem esconder os pormenores, uma confissão
para si mesmo, sentindo-se estranho, como se contasse a história
de outra pessoa. Enquanto narrava, percebeu novamente que a atadura
estava encharcada de sangue e, sem interromper a narrativa que absorvia
a atenção do advogado, abriu a gaveta e pegou uma atadura
limpa, fazendo a troca com admirável destreza que a repetição
ao longo dos anos lhe proporcionara.
Terminou a narrativa suado, com os olhos marejados e um fio de voz.
O advogado estava boquiaberto, remexendo-se na cadeira, sem saber o
que dizer. Ivan Alvedrio recuperou a voz e quebrou o incômodo
silêncio com uma tosse e um pigarro da garganta.
__ É uma história impressionante, doutor Ivan, jamais
ouvi algo parecido.
__ Pois é, meu caro. Se não fosse comigo nem eu mesmo
acreditaria. Mas é a pura verdade, tenho a maioria desses números
anotados. __ Pegou o bloco de anotações e mostrou ao advogado
__ Tenho certeza de que qualquer número desses que eu pesquisar,
vai me trazer uma história de morte violenta.
__ O que o senhor pretende fazer?
__ Bem, muita coisa. Segure-se na cadeira para não cair de espanto.
Mas, desde já, afirmo-lhe que não há força
neste mundo capaz de me demover dessa idéia...
__ ?
__ Pretendo fechar a CBTA!
__ Como é, doutor Ivan? __ Questionou, estupefato, duvidando
dos seus ouvidos.
__ É isso mesmo, Aristides, o que você ouviu. Vou fechar
a CBTA.
__ Isso é impossível, senhor. Traria conseqüências
terríveis, ações judiciais, prejuízos...
__ Por isso preciso de você. Sei que é uma tarefa árdua,
provavelmente mais ousada do que foi a criação da CBTA
ao longo dos anos. Mas estou pronto para assumir as conseqüências...
__ Isso envolverá somas de bilhões de dólares,
prejuízos para os acionistas, desemprego, as bolsas de valores
de todo o mundo serão afetadas... O senhor sabe que pode até
ser preso... Por que não vendê-la em vez de fechá-la?
__ Não, não...Outro continuaria a obra macabra que comecei.
Este mal tem que ser estancado de vez, é a única chance
que tenho de amortizar esse débito com a minha consciência.
Vou transferir para minha esposa e meus filhos alguns bens que garantam
para eles uma vida digna e tranqüila, sem sobressaltos. O resto
servirá para bancar as despesas, as ações judiciais
e o que for possível minimizar de perdas a terceiros.
__ Será uma grande batalha, Dr. Ivan...
__ Eu sei, Aristides, a maior da minha vida.
__ Por onde eu começo?
__ Providencie uma procuração para eu lhe passar plenos
poderes. Depois me traga uma relação dos meus bens pessoais
para que eu lhe indique quais devem ser transferidos para minha família.
Em seguida reúna a diretoria executiva e ordene a paralisação
da produção na matriz e em todas as filiais internacionais.
Eu estarei resolvendo outros assuntos urgentes, mas me encontro com
você depois.
Esperou que a sala ficasse vazia novamente e voltou aos seus pensamentos.
Esticou-se na cadeira, cruzou os braços, jogou a cabeça
para trás e fechou os olhos, parecendo tirar um cochilo. Ficou
assim por alguns minutos e depois se levantou, sacudindo a cabeça
veementemente, tentando afastar de si algum pensamento indesejado.
Pegou um táxi e deu o endereço da casa onde estivera à
procura do jovem desempregado, dono da arma cujo número de série
estivera no seu mais recente sonho e desencadeara os últimos
acontecimentos. Não conseguiu esconder a impaciência diante
dos sinais fechados e da lerdeza do tráfego. Mal esperou que
o carro estacionasse em frente à velha casa e saltou, murmurando
algo que o motorista entendeu como ordem para aguardar.
Esticou o pescoço por cima do portão enferrujado e percebeu
através da janela os três jovens em volta da mesa, jogando
baralho e tomando cerveja. Ficou sem saber o que fazer, então
bateu palmas como fizera da outra vez. Os jovens pararam de tagarelar
e levantaram-se de um salto, como se temessem algo. O mais alto abriu
a porta e aproximou-se com a expressão tensa, cara de poucos
amigos.
O rosto do rapaz provocou-lhe calafrios, a face sisuda e fria era exatamente
a mesma face do jovem carrasco que lhe enfiara corpo adentro os projéteis
calibre vinte e dois que terminavam com a sua vida no pior pesadelo
que tivera entre tantos outros. A visão do algoz fez as suas
pernas fraquejarem, precisou agarrar-se no portão até
que a vertigem passasse.
__O que você quer?
__ Falar com o dono da casa, chamado Davi...
__ Sou eu. O que quer falar?
__ Venho indicado pelo dono da padaria, Sr. Gregório. Sou colecionador
de armas, você tem uma que me interessa...
__ Não tenho arma nenhuma...
__ Não se preocupe, não sou da polícia. Pago bem...
Tirou um maço de notas e deixou-as cair do lado de dentro do
portão, aos pés do rapaz. Ele agachou-se e recolheu nota
por nota, encarando de vez em quando o visitante, com o cenho franzido
e o olhar desconfiado.
__ Bem, tenho apenas um pequeno revólver que era do meu pai,
não é grande coisa.
__ É este mesmo que me interessa...Foi um dos primeiros que fabriquei.
__ O senhor é o barão dono da fábrica?
__ Dono da fábrica sim, mas o barão é por sua conta...
A identificação do interlocutor tranqüilizou o rapaz,
que finalmente abriu o portão e cedeu passagem ao visitante.
Os outros jovens tinham acompanhado o diálogo alguns passos atrás,
protegendo a retaguarda do dono da casa. Com o desfecho da cena relaxaram
os músculos e passaram a encarar o visitante com mais curiosidade
que temor.
O jovem desapareceu dentro da casa e voltou com a pequena arma nas mãos.
Beijou-lhe o cano, entregou-a vagarosamente e com ar solene, como se
estivesse desfazendo-se de uma jóia. Ivan Alvedrio recebeu-a
com mãos trêmulas, alisou com a ponta do dedo o número
de série, 43477.
Enfiou-a no bolso do paletó e procurou controlar a emoção.
__ Você tem emprego?
__ Não. _ Respondeu o jovem, surpreso com a pergunta.
__ Quer trabalhar?
__ Quero, mas não sei fazer muita coisa.
__ Tem preguiça de estudar e aprender?
__ Não! _ Respondeu, ressabiado.
__ Então tome este cartão. Procure-me na semana que vem,
ou ao meu advogado, caso não consiga falar comigo. O nome e o
telefone dele está no verso, fale o seu nome e ele entenderá.
Creio que posso lhe oferecer um emprego e a oportunidade de terminar
os estudos. E também a seus amigos, caso queiram. Abraçou
inesperadamente o jovem e saiu sem falar nada, nem olhar para trás.
Entrou no táxi e ordenou ao motorista que o levasse de volta
para a empresa, assinaria os documentos que o advogado havia preparado
e depois iria para casa. No trajeto, ia acariciando a arma no bolso
do paletó, girava o tambor vazio com a palma da mão e
olhava seguidas vezes para o cano de onde saíra os clarões
alaranjados que tanta dor lhe provocaram no seu sonho mais real.
Ivan Alvedrio trancou-se no escritório da sua casa enquanto pensava
na melhor maneira de contar aos familiares a sua decisão. A mulher
e os filhos já o aguardavam, debatendo entre si os possíveis
motivos da convocação que os obrigara a abandonar às
pressas os afazeres e a escola. Temiam receber a notícia de que
a doença do pai finalmente chegara à fase terminal e sua
morte estava próxima, embora em diversas ocasiões os médicos
houvessem decretado aos sussurros para a esposa e o filho mais velho
o fim iminente do paciente, vaticínio que o passar dos anos se
encarregara de desmentir. Nas suas conjecturas só conseguiam
atinar com essa possibilidade, ouvir a dura notícia agora pela
boca do pai, algo como “desta vez não tem jeito, acabou
mesmo, procurem ser fortes” etc, etc, etc. Talvez esse agravamento
da doença fosse a explicação para o comportamento
estranho do pai nos últimos dias, o semblante contraído,
o ar distante, o mutismo incomum durante as refeições,
parecendo ter um grande problema para resolver. Só podia ser
isso, concordaram entre si.
A porta do escritório se abriu e Ivan Alvedrio pediu que entrassem
e se acomodassem. Fazia isso com ar grave e solene, aumentando a ansiedade
dos familiares.
__ Nossa, papai, você está nos preocupando!
__ Fique tranqüila, minha filha, estou bem de saúde.
Abriu a maleta em cima da mesa, pegou a pequena arma calibre vinte e
dois, o bloco de anotações onde listara os algarismos
e em seguida repetiu detalhadamente a mesma história que contara
ao advogado. Depois passou para a mulher os documentos dos bens que
transferira para ela e os filhos, explicando com voz pausada a decisão
que tomara. Calou-se, baixou a cabeça humildemente, deixando
as lágrimas molharem o tampo da mesa enquanto tentava preparar-se
emocionalmente para os questionamentos e com certeza as recriminações
que ouviria da família.
Estranhamente, ninguém falou nada. Levantou a cabeça e
viu que todos estavam cabisbaixos, chorando como ele, em silêncio.
A filha levantou-se e o envolveu nos braços, depois a esposa
e os outros dois filhos se achegaram e também o envolveram num
forte abraço. Ninguém fez perguntas ou pediu esclarecimentos
de qualquer natureza, apenas ficaram em silêncio por alguns instantes,
todos juntos numa solidária comoção. Enquanto saíam
da sala, Ivan Alvedrio observava-os com ternura, invadido por um conforto
interior. Reconheceu que o seu momento de fraqueza e vulnerabilidade
contribuíra para aparar algumas arestas e barreiras erguidas
pelo seu comportamento auto-suficiente e distante ao longo dos anos.
Sentiu um grande alívio com a reação da família,
imaginara um grande conflito familiar e essa era a situação
que mais temera enfrentar.
Mandou preparar o avião para um vôo urgente até
a Austrália. Lá, iniciaria de fato a parte mais difícil
da sua batalha, o convencimento de antigos adversários que agora
queria trazer para junto de si.
Enquanto cruzava o oceano, pensava nos próximos passos do novo
desafio que se impusera. Solitário nos aposentos cujo requinte
compartilhara muitas vezes com altos executivos e autoridades de vários
países, não se ocupava agora das cifras, das datas de
entrega, do orgulho em mostrar ao interlocutor os armamentos de última
geração desenvolvidos pela CBTA que, se adquiridos, poderiam
impor a derrota aos inimigos. O júbilo que sentia ao fechar um
grande negócio, ganhar uma concorrência internacional,
ou criar uma nova arma e se manter na vanguarda, cedera lugar a um vazio
existencial.Todos esses pequenos prazeres haviam se desintegrado da
sua razão, tornando-se carentes de sentido e motivação.
Sabia que se tentasse retornar aos antigos hábitos, às
antigas atividades, essas situações agora se tornariam
fontes de angústia e esgotamento, motivos de novos achaques para
sua consciência. A mudança não tinha mais volta,
ganhara um aspecto de “missão a cumprir”, só
restava seguir em frente e enfrentar com resignação as
provações e dores que o aguardavam. Ainda assim, seriam
mais amenas que insistir numa vida carente de sentido e repleta de pesadelos
que o seu interior, a sua alma, não possuíam mais estrutura
para suportar.
Do aeroporto de Sydney foi direto para o escritório da sua empresa
no centro da cidade. Ao descer do táxi, viu a legião de
repórteres aglomerados na entrada do edifício, que estava
de portas fechadas. Respirou fundo e caminhou resoluto em direção
à entrada, enfrentando o assédio, impassível. Manteve-se
sereno diante do frenesi, da balbúrdia de gritos, microfones
e flashes, abrindo caminho com os cotovelos até chegar diante
dos degraus. Virou-se calmamente e explicou que “a empresa não
estava falida como pensavam. Apenas passaria por uma grande mudança
e todos saberiam dos detalhes daí a dois dias por meio da entrevista
coletiva que concederia na sede da empresa em Belo Horizonte, Brasil”.
Conseguiu entrar no prédio, deixando a confusão para trás.
Precisou acalmar também os empregados, que o olhavam atônitos
e ansiosos. Disse que não se preocupassem, saberiam dos detalhes
sobre a mudança nos rumos da empresa muito brevemente e que os
seus empregos, assim como os das demais filiais não corriam risco.
Depois, pediu à secretária que ligasse para o diretor
da ONG com quem digladiara dias antes sobre o projeto de desarmamento
e de cuja contenda saíra vencedor.
Percebeu a voz ressentida e desconfiada do outro lado da linha, mas
que deixava transparecer uma pitada de curiosidade. Pediu para ser recebido
na sede da Organização pacifista, se possível de
imediato, iria sozinho. A voz do outro lado emudeceu por alguns instantes,
depois aquiesceu, informando que estaria aguardando.
Ivan Alvedrio lavou o rosto, trocou a atadura, penteou os cabelos e
suspirou na frente do espelho. “Pronto, começou”.
Estava dada a largada para uma nova fase de desafios na sua vida. Precisava
ter sorte, mas confiava na sua veia empreendedora, esculpida ao longo
dos anos pela experiência. Sabia que tinha boa capacidade de argumentação,
de planejamento, e traquejo no trato com líderes políticos,
mas compreendia que agora a sua principal força seria a sinceridade.
Ia para o encontro com o espírito desarmado, sem cartas na manga.
Dependia da ajuda de um ex-adversário para realizar uma grande
façanha ética e humanitária.
O porteiro, o ascensorista e também a recepcionista da Organização
encararam o inusitado visitante com indisfarçável curiosidade,
sem esconder certa animosidade no semblante, querendo lembrá-lo
de que ele era o inimigo. Claro, para aquela entidade, um fabricante
de armas, mais do que um ministro da guerra ou um general, era considerado
o inimigo número um, tudo de abominável que podia existir
na face da Terra. Para o visitante, isso explicava os olhares hostis
e significava que a notícia da sua visita à Organização
já se espalhara.
Foi introduzido na sala de reuniões e verificou sem surpresa
que toda a diretoria da ONG provavelmente estava presente. Contou doze
pessoas, homens e mulheres cujos olhares inquisidores estampavam nos
rostos a visível desconfiança que pesava sobre o visitante.
Um senhor de cabelos grisalhos aparentando cerca de sessenta anos levantou-se
e cumprimentou o visitante com um aperto de mão, anunciou-se
como o presidente da organização e em seguida apresentou
todos os demais. Ao final, pediu que se sentasse à cabeceira
da mesa e explicasse a razão da visita.
Ivan Alvedrio sentou-se calmamente e, antes de começar a falar,
lançou um olhar sobre a sua platéia. Por um momento, sentiu-se
fraquejar, começava a sentir o quanto seria difícil convencer
aquelas pessoas sobre a veracidade de suas palavras.
__ Bem, vim aqui oferecer a vocês as minhas ações
da CBTA!
De
volta para casa, fixava pela janela do avião o colchão
de nuvens que se estendia a perder de vista. Relembrava os acontecimentos
da reunião no dia anterior, que durara quinze horas ininterruptas.
Mas no final, conseguira acertar todos os detalhes conforme planejara.
Estava cansado, embora muito satisfeito. O início fora tortuoso,
muito difícil. Houve até um momento em que temera ser
expulso da sala sem que o deixassem falar. Foi quando começou
a perceber a enorme ascendência do líder da organização,
Sr. Albert, sobre os demais. Com sua voz pausada e a expressão
descontraída, ele por diversas vezes conseguira acalmar os membros
da sua organização até que as idéias ficassem
bastante claras e todos percebessem a extensão da proposta e
o que ela significava. Embora tivesse exercido profundamente a sua habilidade
negocial, Ivan Alvedrio reconhecia que o presidente da ONG acabara sendo
o grande artífice do acordo, o elemento chave cuja serenidade
e inteligência permitira a celebração do contrato.
Uma etapa fora vencida. Os ex-adversários agora eram seus parceiros,
conduziriam com ele os novos destinos da empresa multinacional. Doara
a maior parte das suas ações para a Organização
pacifista e proveria os recursos necessários para que a entidade
adquirisse as demais ações dos acionistas minoritários
pela cotação da semana anterior, antes de terem sofrido
a considerável queda nos preços. Com a paralisação
das atividades e a imprensa especulando sobre a possível falência
da empresa, o valor das ações tinham despencado. Garantindo
a compra pela cotação anterior, esperava minimizar o prejuízo
de terceiros e as ações judiciais. Mas era otimista, esperava
convencer alguns acionistas a manterem suas ações, pois
estava convicto do acerto e da viabilidade do novo projeto.
Do aeroporto da Pampulha foi diretamente para a sede da sua fábrica.
Vira na televisão o rebuliço entre os empregados, concentrados
no pátio da empresa, alvoroçados com o seu fechamento
e a disparidade das notícias veiculadas.
Desceu do táxi e enfrentou a multidão de rostos angustiados,
muitos deles já conhecidos desde os primeiros tempos da CBTA.
Ouviu-se um murmúrio generalizado, depois um silêncio respeitoso
tomou conta do ambiente, com todas as atenções voltadas
para o recém-chegado. O presidente do sindicato, que vociferava
do alto de um caminhão, interrompeu o discurso e cedeu o microfone
para o industrial.
Ivan Alvedrio subiu sem dificuldade em cima do palanque improvisado,
agradeceu ao sindicalista com um sorriso e um aceno de cabeça
e olhou para a multidão abaixo de si. Fez um minuto de silêncio,
buscando inspiração para o que ia dizer e dirigiu-se ao
aglomerado de operários ansiosos e tensos.
“Meus amigos, tenho algumas coisas importantes para dizer. O meu
coração está em chamas, muitos de vocês pensarão
que estou completamente louco. Não tenho dormido bem, não
consigo me lembrar da última vez em que dormi uma noite completa,
sem sobressaltos. Todas as vezes que vejo na televisão ou leio
nos jornais a notícia de um assassinato ou de um combate, meu
coração se apequena. Todos sabemos que a CBTA não
tem concorrentes à altura, portanto, saem das nossas forjas,
das nossas mãos, aquelas armas. Sinto-me co-responsável
por essas mortes, estou infeliz.
Minha consciência, antes serena, agora está revolta e histérica,
não tenho mais paz, não quero mais continuar sendo um
mercador da morte. Convido vocês a compartilharem e construírem
comigo uma nova atividade para esta empresa. Já temos um novo
sócio, uma aguerrida organização que nos ajudará
nessa tarefa. Mudaremos o nosso nome e a divisão nacional será
remodelada para produzir máquinas agrícolas e tecnologia
no ramo de alimentos. A divisão internacional produzirá
biotecnologia, principalmente medicamentos e vacinas. Todos vocês
serão treinados o tempo que for necessário e terão
seus empregos garantidos.”
Entregou o microfone ao estático sindicalista, desceu do caminhão
e caminhou na direção do seu escritório por entre
a massa de operários atônitos. Ficara sem voz e estava
extenuado, as energias consumidas pela emoção e pelo discurso.
Mal entrou na sala, o advogado foi ao seu encontro.
__ Como está, Dr. Ivan? __ Perguntou, preocupado com o ar abatido
do patrão.
__ Estou bem, Aristides. Apenas cansado.
__ A polícia já está aí, aguardando para
levá-lo. Estão dizendo que o senhor está manipulando
o mercado de ações e um juiz expediu o mandado. Como eu
disse, a nossa batalha será grande.
__ Eu já esperava por isso. Peça que esperem só
mais um momento, vou trocar minha atadura.
Entrou no banheiro e se olhou no espelho. Estava com olheiras, os cabelos
desarrumados e a barba por fazer. Contudo, sentia-se bem, um sentimento
diferente, pela primeira vez na vida o coração estava
em perfeita sintonia com a mente, com a razão. Balançou
a cabeça negativamente em sinal de desaprovação
para seus pensamentos, estava fantasiando demais, concluiu.
Abriu a gaveta do armário, pegou uma atadura limpa e desenrolou
mecanicamente a outra que cobria sua mão, deixando-a cair no
cesto de lixo. Quando começou a recolocar a nova bandagem, interrompeu
abruptamente o gesto e olhou surpreso para a palma da mão, a
ferida aberta desaparecera. No seu lugar havia uma grande cicatriz avermelhada.