2º CONCURSO DE LITERATURA DA FENAE – LETRAFENAE 2004

1º lugar na categoria Contos


Arivaldo Sidney Ruas (Lagoa Santa/MG)

 

A FERIDA ABERTA

                               Ney Ruas

 

“Deves nunca perder o respeito por ti mesmo nem teres por que enrubescer quando a sós contigo”.
Gracián, A arte da prudência.

 

Ivan Alvedrio era um alto executivo bem sucedido, uma dessas pessoas que a sociedade convencionou chamar de “homem de bem”. Pagava seus impostos religiosamente em dia, freqüentava a igreja aos domingos com a família, não possuía litígio com os vizinhos, nem brigava no trânsito. Contribuía com grandes somas para instituições de caridade, era gentil, não maltratava os subordinados, tinha o respeito e a admiração da sua comunidade. Milionário, sua fortuna fora construída pouco a pouco mediante um trabalho dedicado e incansável desde tenra idade, mas todo esse dinheiro não conseguira proporcionar a cura de um grave problema de saúde que o afligia, apesar dos sucessivos gastos com viagens, hospitais, especialistas, exames, diagnósticos e remédios.

A sua mão direita estava tomada por uma ferida permanente, que começara alguns anos antes como uma pequena mancha roxa, transformara-se depois de algum tempo numa espécie de verruga e evoluíra para uma ferida em carne viva que ocupava a área central da palma da mão e sangrava constantemente. Há mais de cinco anos usava uma bandagem para enfaixá-la, que precisava ser trocada de duas em duas horas porque ficava úmida de sangue. Já consultara médicos renomados no Brasil e no exterior, ouvira os mais variados diagnósticos e experimentara diversos tratamentos, que às vezes resolviam o problema por um ou dois meses, mas depois o sangramento voltava com mais força. Estava desesperado, achava que ia morrer em virtude da doença, embora tivesse recursos suficientes para consultar o especialista mais caro do mundo ou internar-se no hospital mais sofisticado.

Talvez devido a essa preocupação que lhe martelava a alma, começou a sonhar com mortes, velórios e enterros. No início, os sonhos eram espaçados, de dois em dois meses, mês sim, mês não, mas agora eram semanais e às vezes aconteciam até em noites seguidas. Os personagens do sonho eram homens e mulheres, jovens ou velhos e às vezes crianças ainda pequenas. A situação era sempre a mesma, o caixão aberto, o cadáver limpo e arrumado, as pessoas ao redor chorando ou rezando. Depois, parecia um filme sendo rebobinado para trás, via o momento em que a morte acontecera, um ferimento a bala de onde o sangue jorrava, o baque surdo do corpo caindo e os olhos sempre arregalados de espanto. Em seguida tudo se apagava, como nos intervalos para os comerciais de TV e aparecia uma seqüência de algarismos precedidos sempre por algumas letras maiúsculas. Das letras nunca conseguia se lembrar, mas os números eram sempre a parte do sonho mais nítida, marcante, que incomodava sua memória no dia seguinte e nos demais. Mudavam as pessoas, os lugares, os rituais, mas permaneciam os choros, as manchas de sangue, os olhos arregalados de espanto e um intrigante número no final, então tudo terminava. Acordava com a boca seca e uma leve dor no peito, com uma renitente angústia envolvendo o seu coração e esse mal-estar cedia apenas no decorrer do dia, quando os inúmeros afazeres e as enormes cifras com que lidava conduziam sua mente para outras preocupações.

A sua indústria multinacional espalhada por todos os continentes batia todo ano recordes de lucratividade, mas a filial Australiana estava passando por sérios problemas. Primeiro, foi a campanha de desarmamento da ONG pacifista, que contribuíra para uma acentuada queda nas vendas. Depois, o projeto de lei proibindo a fabricação e a venda de armas no país, que ganhara surpreendente importância e estivera prestes a ser aprovado. Passara o dia on-line com a Austrália, contratando lobistas e seduzindo deputados com generosas verbas. No final do dia, a tendência de aprovação havia sido revertida, mas a tensão extrema consumira a sua energia, ficara extremamente cansado e ansioso para dormir.

Estava ao volante do seu Audi preto, aborrecido com o rotineiro congestionamento na Avenida Antonio Carlos. O trânsito de Belo Horizonte era insuportável àquela hora da noite, mesmo assim, dispensava o motorista, gostava de dirigir o potente carro, um dos seus poucos prazeres. Os seguranças iam num carro atrás, por precaução, mas felizmente nunca precisara deles. Quando a fila de automóveis empacou novamente num sinal vermelho, soltou um palavrão e ligou o rádio para se distrair. Ouviu um barulho do seu lado esquerdo e quando olhou já deu de cara com a arma encostada no vidro da porta. Um jovem de dezessete ou dezoito anos, olhos duros e frios rosnou de supetão.

__ Passe a carteira, granfino desgraçado, ou vai morrer agora mesmo!

Assustou-se automaticamente e o coração disparou. Lembrou-se então da blindagem do veículo que lhe custara duzentos mil dólares e acalmou-se. Riu intimamente do seu medo, não existia a menor possibilidade da pequena arma calibre vinte e dois romper a sua fortaleza, conhecia profundamente aquela arma, a sua potência, os seus mecanismos e suas limitações, ela era produzida na sua fábrica do Brasil há mais de vinte anos e com ela começara o seu império empresarial.
Despreocupou-se com o jovem e pegou o fone para acionar os seguranças que haviam ficado retidos no cruzamento. Viu o lampejo de surpresa e ódio nos olhos do rapaz e logo depois se surpreendeu ele mesmo. Num gesto brusco e rápido o jovem assaltante abriu a porta do veículo (percebeu apavorado que se esquecera de travá-la) e acionou o gatilho três vezes. Três clarões alaranjados, seu pescoço e seu peito rasgados por uma dor insuportável, inédita. Depois viu o corpo do rapaz sacudir-se como se estivesse dançando, tombando em sua direção, os olhos arregalados de espanto e uma careta de dor. “Malditos seguranças, sempre atrasados”, pensou. Sentiu-se flutuar, viu seu próprio corpo, imóvel, seus olhos arregalados, a mancha vermelha espalhando-se pela camisa branca, impregnando o banco de couro com sua quente umidade, o jovem debruçado sobre suas pernas, as costas tingidas de vermelho, os seguranças esbaforidos correndo de um lado para outro como baratas-tontas. De repente tudo ficou escuro, sem sentido, aparecendo aos poucos a imagem de algumas letras que não conseguia distinguir e um número martelando na sua mente, 43477.
Acordou ofegante, sobressaltado, sentou-se na cama e ficou imóvel, relembrando o sonho e sentiu um arrepio. Pensou em acordar a mulher, que ressonava tranqüilamente, mas mudou de idéia, a esposa já não demonstrava mais a mesma paciência para ouvir seus relatos, estava aborrecida com a rotineira interrupção do seu sono no meio da noite para ouvir histórias de mortes e tragédias que não conseguia compreender. Tateou o escuro com os pés em busca dos chinelos, foi para o escritório e ligou o computador.

Esse sonho tinha sido diferente, o morto era ele próprio, tudo parecia real e ainda sentia a sensação dos projéteis rasgando a sua carne, empurrando o seu corpo para trás, lembrava-se do rapaz tombando sobre suas pernas e o seu grito de dor ainda lhe feria os ouvidos. Aquele número acendera um alarme na sua memória, precisava averiguar se aqueles algarismos tinham alguma conexão com a realidade, a sua realidade.

Ficou imóvel por alguns minutos, tentando lembrar-se da senha que permitia o acesso remoto ao banco de dados da sua fábrica. Fazia muitos anos que abdicara de conduzir o dia a dia da produção, ocupava-se agora só dos grandes negócios. Gostava de se sentir poderoso, tratava apenas com grandes empresários, ministros, generais e os altos escalões de autoridades dos diversos países que desejavam adquirir lotes de armas da sua indústria.

Lembrou-se do código de acesso, conectou-se ao sistema e logo tomou conta da tela o logotipo da empresa, onde se lia “Companhia Brasileira de Tecnologia em Armas”, nome que o marketing das agências de publicidade conseguira firmar como referência no mercado de armamentos utilizando-se da sigla CBTA.

Apanhou o pequeno bloco de anotações na sua pasta e escreveu o número com o qual acabara de sonhar, assim como fizera com todos os outros anteriores. Não sabia bem porque, anotara todos eles. Inicialmente pensara em utilizá-los para jogar na loteria, mas nunca colocara a idéia em prática, foi simplesmente acrescentando os números que já haviam preenchido cinco páginas do pequeno bloco.

Acessou o banco de dados e resolveu fazer uma experiência que lhe ocorrera momentos antes. Logo que acordara sobressaltado do pesadelo, as recordações e imagens do sonho cederam lugar a um pensamento que antes não lhe ocorrera, mas agora ganhava força. Aqueles números que sempre apareciam como a “última cena” dos seus sonhos provavelmente possuíam alguma relação com ele, alguma ligação, alguma conexão. Estava ficando louco com esses malditos sonhos e precisava descobrir alguma coisa, um fato qualquer que permitisse o elo com o seu subconsciente para desvendar o enigma. Assim, a primeira idéia que lhe ocorreu foi procurar esse número na sua fábrica. Vivera o maior período da sua vida nos limites da sua fábrica, por diversas vezes chegara a dormir por lá mesmo, até poucos anos antes saía de casa todos os dias muito cedo, quando a mulher e os filhos ainda estavam dormindo e retornava muito tarde, quando também já estavam na cama. Mudara de hábitos apenas recentemente, quando um atropelamento colocou o seu filho caçula entre a vida e a morte. A espera na UTI do hospital, enquanto os médicos faziam a cirurgia diagnosticada como de alto risco, a impotência diante dos acontecimentos, o choro convulsivo da esposa, desesperada e abatida pelo sofrimento, tudo isso fora marcante, um divisor de águas na sua vida. O garoto restabeleceu-se rapidamente e voltou à sua rotina habitual, mas ele próprio não conseguiu voltar à sua antiga rotina. A iminência da perda, as longas horas ociosas caminhando de um lado para outro no pátio do hospital obrigaram-no a uma atividade à qual não estava acostumado, refletir sobre sua própria vida. Percebeu angustiado que não podia controlar todas as coisas, não controlava o crescimento das crianças nem o contínuo distanciamento delas em relação a ele, um pai presente apenas por telefone. A serena resignação da mulher, que não o questionava mais quando seguidas vezes chegava em casa depois da meia-noite, após rotineiros jantares de negócios. A sua família aceitava tacitamente a sua presença em casa, tinha o seu lugar como membro daquele lar, mas no fundo era um completo estranho a eles, não sabia como os filhos iam na escola, como estava a sua saúde, as suas companhias ou as preocupações da esposa. Desde aquele dia no hospital, mudara radicalmente de hábitos. Passou a almoçar em casa todos os dias, saía mais tarde e chegava mais cedo. Mas o tempo que dispensara àquela indústria ao longo dos anos tinha absorvido a maior parte da sua existência, por isso, se aquele número possuía alguma relação com a sua vida, o primeiro local onde deveria ser procurado era nos arquivos da sua fábrica.

Entrou na ferramenta de busca do programa e digitou os algarismos 43477. Esperou ansioso por alguns instantes e logo o resultado apareceu na tela. Sem conseguir conter a curiosidade, começou a ler avidamente as informações e, enquanto lia, ia arregalando os olhos. Ao terminar, esmurrou a mesa com a mão direita, esquecendo-se por completo do ferimento, que imediatamente tingiu de sangue a bandagem que a enfaixava, obrigando-o a ir até o banheiro para substituí-la. Feita a troca, retornou, ansioso, e se postou novamente na frente do vídeo, de onde não conseguia desgrudar os olhos. A informação mostrada na tela construía uma ponte que finalmente poderia conduzir ao significado daquela repetição de sonhos que tanto absorviam as suas noites desde muito tempo. A resposta exibida não deixava dúvidas, tratava-se de uma arma produzida na sua fábrica. “Modelo 1A, calibre 22, ano de fabricação 1980, lote 1614, adquirida por Casa de Armas Peçanha em fevereiro de 1981, Nota Fiscal 145316”.

Foi até a cozinha e tomou sofregamente um copo d´água, a boca ficara seca e amarga com a surpresa. Voltou ao escritório e ficou sentado diante do computador, ereto e imóvel, olhos fixos na mensagem exibida, olhava mas não via nada, seus pensamentos estavam agitados, frenéticos. Ocorrera-lhe algo surpreendente, mas de uma lógica inabalável. Se o número nitidamente impresso na sua memória pelo sonho era também o número de série gravado no aço daquela arma, tornava-se evidente quais eram as letras que sempre acompanhavam os algarismos em todos os pesadelos, mas das quais nunca conseguia se lembrar com clareza. A conexão que acabara de fazer entre um fato e outro tirava um véu das suas lembranças e as letras já saltavam na sua memória, nítidas, claras e ostensivas. Percebia agora que elas nunca mudavam, eram sempre as mesmas, “CBTA”. A sigla da sua indústria acompanhava os números de série, eram a marca de qualidade que fazia questão de imprimir em todas as armas para diferenciá-las da concorrência.

Apanhou o pequeno bloco, selecionou aleatoriamente com o dedo um dos números anotados e digitou no computador. Esperou alguns segundos e a tela estampou irremediavelmente outro número de série, desta vez o “modelo 7A, calibre 38, lote 2317, adquirida por Plantão Empresa de Segurança Ltda, Nota Fiscal 343817”. Digitou outro número da lista, depois vários outros, até que as mãos trêmulas deixaram cair o pequeno bloco de anotações. Todos os números se referiam a revólveres, pistolas, fuzis, metralhadoras, granadas, morteiros e mísseis, todas as modalidades de armas que já produzira, desde as mais simples até as mais sofisticadas, de destruição em massa.

Desligou o computador e as pernas bambas guiaram-no como a um robô até o pequeno sofá. A testa estava molhada de suor, os lábios sem cor acentuavam a palidez do rosto, a mão direita doía insuportavelmente, fora do padrão com o qual já se acostumara a conviver. Mas havia outra dor que o incomodava ainda mais, lhe feria mais fundo naquele momento. Vinha do seu peito, do lado esquerdo, pelo menos assim lhe parecia. Sabia, no entanto, que tinha um coração de atleta, pressão sanguínea normal e estável, nada que indicasse um princípio de infarto ou algo parecido. Era uma dor profunda, que vinha de dentro, não tinha origem física, apesar de doer-lhe até os ossos e entrecortar sua respiração.

Voltou taciturno para o quarto de dormir, mas não conseguiu fechar os olhos um minuto sequer. Levantou-se muito cedo e mal conseguiu ingerir um copo de leite frio, sempre com os olhos distantes e os pensamentos em turbilhão. Vestiu o paletó e saiu acelerado, sem saber ao certo o que fazer, ligou o carro e desligou-o em seguida, interrompendo a marcha a ré que iniciara para tirá-lo da garagem. Tinha dúvidas, estava confuso, mas lhe ocorreu que se os números eram reais talvez os personagens dos sonhos também fossem e lembrou-se nitidamente do rapaz apertando o gatilho e do projétil rasgando seu pescoço.

Resolveu ir até um cemitério, sabia que existia um nas proximidades e dirigiu-se para lá. Pôs-se a andar entre túmulos e lápides, verificando nomes e datas, mas logo desistiu, não lhe diziam nada.

Nos seus sonhos não apareciam nomes, apenas números, rostos e imagens. Procurou lembrar-se de alguma imagem que pudesse trazer um vínculo qualquer com uma das milhares de lápides daquele lugar mas seu esforço foi em vão, nada acrescentou.

Voltou para o automóvel e seguiu até o escritório, instalado no vigésimo andar do luxuoso edifício com fachada de vidro fumê, sede administrativa da empresa. De lá, tinha uma magnífica vista da cidade com a serra do curral emoldurando-a ao fundo, mas nunca se dera ao luxo de parar cinco minutos nos seus afazeres para apreciar a paisagem. Entrou apressado e deu ordens à secretária para não ser incomodado, cancelou todos os compromissos da semana ou transferiu-os para alguns subordinados. Refestelou-se na poltrona atrás da imensa mesa de mármore e tentou colocar em ordem os pensamentos que insistiam em fugir do padrão metódico e organizado aplicado em todas as suas atitudes. Refletiu por duas horas sem que fosse interrompido e conseguiu acalmar-se, delineando na cabeça uma forma de verificar a porção de realidade dos rostos que freqüentavam seus sonhos. Pegou o telefone e ordenou à secretária que localizasse o seu advogado, precisava falar com ele, urgente. Meia hora depois o advogado entrou na sala, suado e tenso, habitualmente reunia-se com diretores, gerentes e outros executivos da empresa, raramente encontrava-se com o presidente, embora já se conhecessem há muito tempo.

__ Bom dia, doutor Ivan, vim o mais depressa que pude.
__ Bom dia, Aristides, há quanto tempo não o vejo. Como vai a família?
__ Bem. Meu filho mais velho casou-se recentemente.
__ Meus parabéns, sei como você preza a sua família e confesso que gostaria de ter sido mais dedicado à minha. Hoje estou tendo dificuldades para recuperar o tempo perdido, meus filhos vêem em mim um estranho.
__ Não diga isso, o senhor sempre foi um pai responsável.
__ Bem, não importa agora. Chamei-o aqui porque preciso que faça algo para mim. Mas devo lhe pedir para não fazer perguntas sobre o meu objetivo, é algo pessoal e muito importante. Sei que você é bem relacionado na polícia e tem também muitos amigos no judiciário. Isso tornará fácil a sua missão.
__ É verdade, tenho bons contatos.
__ Pois bem. Quero que você me traga a cópia de cinqüenta processos envolvendo casos de mortes por arma de fogo. De preferência acontecidos nos últimos quinze anos, não importa a idade, sexo ou condição econômica das vítimas. Apenas um detalhe é importante, que a arma do crime tenha sido identificada e que conste nos autos o seu número de série.
__ Mais algum detalhe? __ Perguntou, interrompendo a anotação.
__ Sim, preciso disso com urgência, dá para me entregar amanhã?
__ Creio que sim, vou fazer o possível.
__ Ótimo, gaste o que for necessário, isso é uma prioridade para mim. E mantenha o sigilo como é nosso hábito.

O advogado saiu apressado, já empenhado na nova missão, deixando para trás o patrão pensativo e estático, olhos vidrados no infinito. Imerso na confortável poltrona, dedos entrelaçados sobre a mesa, o cenho franzido, imóvel e impenetrável. Por fim, moveu-se lentamente e ligou o computador. Digitou novamente o número 43477, do seu recente pesadelo, para certificar-se de que os últimos acontecimentos eram reais e não parte de outro sonho. Mal terminou de inserir os algarismos e a resposta se repetiu, “Modelo 1A, Calibre 22, ano de fabricação 1980, lote 1614, adquirida por Casa de Armas Peçanha em fevereiro de 1981, Nota Fiscal 145316”. Buscou em seguida os dados da Casa de Armas Peçanha, um dos seus primeiros clientes e anotou o endereço, localizado num bairro da periferia. Dobrou o papel e enfiou-o no bolso, apagando em seguida a tela do computador.

Preferiu ir de táxi, anônimo, sem o séqüito de seguranças atrás. A casa de armas ficava numa região comercial do bairro, rodeada por bares, restaurantes, mercearias e pequenas lojas de roupas populares. Pediu ao motorista que o aguardasse, entrou na loja e algo no ambiente lhe pareceu familiar. Com certeza, era a lembrança de um passado já distante, da época em que gastava sola de sapato, visitando todos os comerciantes de armas para apresentar, pessoalmente, os novos modelos produzidos pela sua indústria, que ainda engatinhava nos primeiros passos, com apenas uma dúzia de empregados.

Esperou o atendente atrás do balcão terminar a venda de uma pequena arma para um jovem. Enquanto isso, ficou observando os modelos de revólveres e pistolas expostos no balcão com tampo de vidro, percebendo com satisfação que naquele ponto da cidade, assim como em boa parte do país e em diversos lugares do mundo, a CBTA transformara em pó a ameaça da concorrência.
O rapaz terminou o atendimento e voltou-se para ele.

__ Posso ajudá-lo, senhor?
__ Sim, gostaria de falar com o dono...
__ É o meu pai, José Peçanha. Está no escritório, lá em cima. __ Apontou a sobreloja.
__ Sou Ivan Alvedrio, da CBTA, seu melhor fornecedor. Pode chamar o seu pai?
__ É claro, um momento.

Chegou com o pai, um velho calvo de bochechas rosadas. Demonstravam um ar de surpresa, curiosidade, e afetada reverência pelo visitante ilustre.

__ Senhor Ivan, há quanto tempo...Mas creio que não se lembra mais de mim, há tempos vem aqui apenas o seu representante de vendas.
__ Não diga isso, seu José. É claro que me lembro do senhor, um dos meus primeiros clientes. __ Mentiu com naturalidade e percebeu o brilho de satisfação nos olhos do comerciante.
__ A que devo essa visita tão inesperada e honrosa, senhor Ivan?
__ Preciso da sua ajuda. Quero montar um museu com as primeiras armas que fabriquei. Sabe como é, está chegando a hora de me aposentar e já estou pensando em algumas coisas para fazer. É uma calibre 22, vendida para você em 1981. Gostaria de saber o seu paradeiro.
__ Vamos ver, vamos ver. Tem o número de série?
__ Sim, aqui está. __ Mostrou o papel com a anotação.
__ Tenho tudo arquivado, como é de costume. Um momento e já volto com sua informação.

Permaneceu em pé, pescoço ereto, olhos fixos na porta por onde desaparecera o velho. Começava a acreditar que encaixaria algumas peças de um enigmático quebra-cabeças, mas não tinha a menor idéia sobre a imagem final que seria formada.

O velho voltou com uma pequena ficha de papel duro, empoeirada e amarelada pelo tempo. Transcreveu os dados do comprador para um pedaço de papel, anotou o endereço e entregou-o com um sorriso de satisfação. Ivan Alvedrio bendisse a sorte, o comprador da arma era outro comerciante do bairro, dono de uma padaria ainda existente, localizada alguns quarteirões adiante. Agradeceu efusivamente o velho, dando-lhe um abraço. Tirou do bolso algumas notas de cem reais e entregou-as ao rapaz, que inicialmente as recusou mas reconsiderou o gesto após o olhar de consentimento do pai.

Achou sem dificuldades a padaria, ficava numa área menos movimentada do bairro. A fachada estava suja e descascada, as marcas de refrigerante e cerveja estampadas em grandes placas de metal carcomidas pela ferrugem e alguns buracos que pareciam feitos a bala. Entrou no recinto e se dirigiu ao caixa onde um homem de cabelos brancos e barba por fazer lia um jornal enquanto equilibrava um enorme cigarro de palha no canto da boca.

__ Boa tarde. Procuro o senhor Gregório, por acaso é o senhor?
__ Sim, sou eu. Do que se trata?
__ Venho recomendado por José Peçanha, da casa de armas. É um assunto particular, pode me dar um minuto?
__ Sim.
__ Sou Ivan Alvedrio, fabricante de armas. O senhor adquiriu da Casa de Armas Peçanha há alguns anos uma pequena arma calibre 22 de minha fabricação, que tenho interesse em colecionar. Posso pagar bem por ela, ainda a tem?
__ Eu a vendi quatro anos atrás para um amigo, morador aqui do bairro.
__ Sabe onde mora?
__ Morava. Morreu há dois anos. Era empregado daquela fábrica de sapatos __ Apontou com o queixo um grande galpão do outro lado da rua, com aspecto de abandono, paredes pichadas e sujas.
__ O que aconteceu com a fábrica?
__ Endividou-se e foi tomada por um banco que demitiu todo o pessoal.
__ Do que ele morreu?
__ De cirrose ou infarto, não sei bem. Não achou mais emprego e passou a beber demais. Morreu com quarenta e sete anos e deixou apenas uma casa para o filho.
__ Era viúvo?
__ Era.
__ Então a arma deve estar com o rapaz...
__ Sim, está, mal o pai morreu ele largou os estudos e convidou dois amigos para morar com ele.

Temo pelo seu futuro, os colegas não são boa gente. Quando vem aqui, pergunto o que anda fazendo, se está procurando emprego. Ele diz que sim, mas tenho minhas dúvidas.

__ Gostaria de procurá-lo e comprar-lhe a arma. Pode me dar o seu nome e endereço?
__ Chama-se Davi. Mora três ruas abaixo, ao virar a esquerda é a primeira casa do lado de cá, tem um pé de jabuticabas na frente e parte do muro está caída, foi atingida por um caminhão desgovernado. Não tem como errar.

Agradeceu e despediu-se. Achou facilmente a casa, mas cansou de bater palmas e gritar “ó de casa” sem que aparecesse alguém. Resolveu ir embora e voltar no dia seguinte.
Decidiu ir direto para casa, não estava com ânimo para encarar a rotina de trabalho, atender telefonemas e tomar decisões. Sua cabeça estava totalmente tomada pelo novo assunto, suas energias estavam canalizadas para esclarecer de vez o significado dos seus sonhos, não possuía ânimo para mais nada naquele momento.

Enquanto o táxi deixava para trás a paisagem empobrecida pelos viadutos transformados em cortiços, Ivan Alvedrio repousava o pescoço no banco traseiro e de olhos fechados revivia alguns dos seus últimos pesadelos. Percebia nitidamente os choros, as lágrimas e, estranhamente, tinha a noção exata da localização dos buracos de bala no corpo do cadáver, às vezes um único, às vezes vários e ocasionalmente sentia no seu próprio corpo a dor e o impacto do chumbo rasgando tecidos e músculos.

O carro parou na porta da sua casa e ele desceu mudo e circunspecto, ombros caídos e gestos lentos, sentia-se exausto. Tirou uma nota, pagou o motorista e sem responder ao agradecimento virou as costas e entrou na residência, cumprimentando mecanicamente com um aceno de cabeça o jardineiro e os vigias que o olhavam surpresos. A esposa também se surpreendeu com a sua presença em casa àquela hora do dia e quis saber o que tinha acontecido. Respondeu que estava com dor de cabeça, um pouco cansado e queria descansar. Ela aquiesceu sem retrucar, embora as sobrancelhas franzidas denunciassem sua estranheza diante do fato inesperado e pouco habitual. Não se lembrava de nenhuma vez em que o marido viera para casa durante o expediente, no meio da tarde, a não ser em emergências como doença das crianças ou numa ocasião em que houve um princípio de incêndio na casa.

Tomou um banho, trocou de roupa e tentou ler um livro para relaxar, mas depois de cinco minutos chegou à conclusão de que era impossível concentrar-se na leitura. Ficou deitado de costas, olhos abertos fixos no teto, imagens da sua vida se desenrolando na memória, como se fossem de outra pessoa, tão estranhas lhe pareciam no momento. A primeira fábrica, o primeiro milhão, o primeiro contrato internacional, o primeiro canhão, o primeiro míssil, a multiplicação das suas indústrias, o poder de decidir, muitas vezes, o lado vencedor em uma guerra. Adormeceu com esses pensamentos e sonhou com grandes batalhas, exércitos inteiros empunhando armas da CBTA dizimando-se mutuamente sob o fogo cruzado.

Acordou só no dia seguinte e foi logo cedo para o escritório. Sem conseguir conter a ansiedade ligou para o advogado, queria notícias sobre o andamento das pesquisas nos processos criminais. O advogado tinha conseguido os processos e meia hora depois irrompeu na sala com dois ajudantes carregando uma dezena de caixas.

__ Está tudo aí como pediu, doutor Ivan, cópias de cinqüenta processos.
__ Tem o número de série das armas?
__ Sim, verifiquei todos pessoalmente. Referem-se a mortes por variados motivos, sempre por arma de fogo cujo número de série consta no processo.
__ Excelente. Como sempre, fez um ótimo trabalho.

Esperou que se retirasse, fechou a porta e debruçou-se avidamente sobre as caixas. Retirou um processo e começou a folheá-lo. Não era advogado, mas, executivo experiente, entendia com facilidade a linguagem jurídica. Era sobre um assalto à Caixa Econômica Federal da Rua Tupinambás que ocorrera três anos antes, lembrava-se da notícia publicada com estardalhaço nos jornais, acontecera um grande tiroteio. Um cabo da polícia de trinta e seis anos e um jovem de apenas dezessete, mortos a bala. Continuou folheando o processo e deparou-se com a foto das armas envolvidas, todas fabricadas pela CBTA. Sentiu um aperto no coração, mas continuou a leitura, as mãos trêmulas e a boca amarga. Escreveu o número de série num pedaço de papel e apanhou o bloco onde relacionara os números com os quais vinha sonhando todos aqueles anos. Esticou o dedo indicador e foi conferindo número por número com extrema ansiedade, olhos arregalados e atentos.

Ao chegar à terceira página, sentiu um estremecimento, estava lá o número idêntico ao da arma com a qual o policial tinha sido morto. Continuou a busca e duas páginas depois encontrou também nas suas anotações o número de série da arma com a qual um dos policiais liquidara o jovem assaltante. Aquilo significava que os personagens daquele processo já haviam freqüentado os seus pesadelos, embora em ocasiões diferentes, como demonstrava o intervalo de duas páginas entre as anotações. Ocorreu-lhe que, realmente, só sonhava com um número de cada vez e esse número nunca se repetia. Isso significava que cada sonho dizia respeito a uma arma diferente, embora alguns deles mostrassem mais de uma vítima, outros mostravam até dezenas de vítimas, indicando a possibilidade de tratar-se de uma arma de grande porte.

Continuou folheando o processo, esperando encontrar algum detalhe que o fizesse lembrar-se dos respectivos sonhos envolvendo aqueles personagens. A mão doía insistentemente, a atadura estava úmida de sangue e precisava ser trocada, mas a ansiedade falou mais alto e não quis interromper sua busca. Ao deparar-se com a fotografia do policial estendido no chão com uma mancha de sangue cobrindo todo o peito, a lembrança veio como uma bofetada. Lembrou-se de um dos seus sonhos, o velório, a salva de tiros da corporação, o choro convulsivo da mulher jovem e pálida, o casal de adolescentes de olhos vermelhos e úmidos que pareciam não entender o que estava acontecendo.

Passou rapidamente para a página seguinte e viu a foto do jovem caído numa poça de sangue, a arma empunhada firmemente na mão direita como se recusasse largá-la mesmo diante da morte, os olhos arregalados de espanto, surpreso por encontrar o seu fim naquele tiroteio. Recordou-se da cena de outro velório num barracão simples do morro, meia dúzia de mulheres jovens e chorosas, uma velha senhora com olhos fundos e tristes segurando um pequeno rosário e pronunciando orações enquanto as demais repetiam, o jovem num caixão simples, mas repleto de pétalas, um cachorro esquálido deitado no canto do cômodo, observando com olhos curiosos o que se passava. Depois, um número fechando a cena, o mesmo número, agora sabia, que estava grafado na arma que trouxera consigo o fim trágico daquele jovem.

Ivan Alvedrio fechou com veemência o processo e correu até o banheiro. Sentiu vontade de vomitar repetidas vezes, mas conseguiu se controlar. Sentiu-se fraco, por isso sentou-se ali mesmo e escorou as costas no azulejo frio, encolheu as pernas, abraçou os joelhos e apoiou a cabeça nos braços, fechando os olhos em seguida. Ficou ali sem saber por quanto tempo, depois se levantou cambaleante e apoiando-se nas paredes voltou para a sua sala.

O processo seguinte era sobre uma briga de trânsito ocorrida anos antes na Avenida Afonso Pena. Um incidente simples e corriqueiro que acabara em tragédia, a morte estúpida de um motorista de táxi por um representante comercial, “calmo e cordato e sem antecedentes criminais”, segundo o depoimento dos vizinhos. Folheou os depoimentos, checou o número de série da arma com o seu bloco de anotações (estava lá!) e procurou as fotos da vítima. Ao ver o rosto vermelho e a barba emaranhada, a cabeleira ruiva e farta, localizou a imagem na sua memória. O caixão sendo fechado pelos filhos e baixado à sepultura, a esposa jogando o primeiro punhado de terra, os choros e as velas, depois os taxistas saindo em carreata até o centro da cidade. O próximo caso era sobre uma menina de seis anos de idade, a pequena Tânia. A tragédia se dera no bairro Santa Tereza, numa manhã de domingo. Ela estava brincando na calçada, enquanto o tio, um jovem de vinte e três anos, conversava com um amigo, advogado recém formado, em frente ao portão da casa. Um automóvel virou a esquina em alta velocidade e abalroou a lateral do carro estacionado no meio fio, pertencente ao jovem advogado. Passado o susto, os dois decidiram perseguir o motorista infrator, que simplesmente fugira sem dar satisfações. O rapaz colocou a sobrinha e o irmão menor dentro do carro do advogado e saíram ambos em perseguição ao fugitivo, que em certo momento desceu do carro e deu três tiros no veículo dos perseguidores, acertando em cheio a menina que estava no banco de trás. Ivan Alvedrio fechou os olhos e relembrou a imagem do rostinho sereno e imóvel, os olhinhos fechados como se estivesse dormindo, os familiares desesperados, as lágrimas, as lágrimas, as lágrimas...

Teve forças ainda para vasculhar mais três processos, uma morte numa briga de bar, um latrocínio numa pequena farmácia de bairro e uma grande briga entre traficantes rivais em que as metralhadoras e os fuzis da CBTA cuspiram fogo durante a noite inteira, acionadas por guerreiros ainda sem barba no rosto. Ao amanhecer, o morro estava tingido de silêncio e vermelho, com uma dezena de corpos de jovens entre quatorze e vinte e um anos, esparramados e imóveis, em meio ao sangue e as cápsulas vazias.

Devolveu todos os processos para as caixas e lacrou-as diversas vezes com barbante e fita adesiva, temendo a própria curiosidade. Sabia que se continuasse vasculhando aquelas páginas repletas de horror e morte estaria acionando uma espécie de “índice” das imagens de mortes e velórios gravadas em sua memória pelos sonhos arquivados ao longo dos anos. E agora, as cenas que até então não faziam sentido algum e o pressionavam apenas para uma busca de explicação devido à habitual reincidência, adquiriam um significado mais do que evidente, a mensagem era clara. Ele, Ivan Alvedrio, o dono da CBTA, era co-participante de todos aqueles assassinatos, viabilizara a existência daquelas armas, possibilitando que elas chegassem naquelas mãos criminosas para finalizar várias vidas, seu dedo era o dedo invisível que apertava o gatilho junto com os assassinos. Não queria folhear mais processos nem relembrar as imagens e os choros dos familiares, sentia-se como um parente do morto, a dor da perda, o desespero, freqüentemente acordava dos sonhos com o gosto salgado das lágrimas nos lábios. Ao lembrar-se, a sensação era a mesma, a sua memória guardava não apenas as imagens, mas também os sentimentos. Isso o angustiava, não queria passar por tudo de novo, principalmente agora que a sua consciência estava ávida por cobrar uma fatura da qual até então ele nem imaginava ser devedor. Guardou as caixas de processos no fundo do armário e o trancou a chave. Estava trêmulo e com a boca seca, por isso sentou-se para tomar um gole d´água e colocar os pensamentos em ordem.

Finalmente decodificara aquele enigma que há tanto tempo era a prioridade dos seus pensamentos e das suas energias. Mas a compreensão do fato não trouxera consigo o alívio. Pelo contrário, o impacto tinha sido devastador no seu íntimo, o seu coração se apequenara, seus objetivos de antes, a senda pelo poder e pelo sucesso que empreendera como alvo número um da sua existência parecia-lhe agora inócua e sem sentido. As visões daquelas mortes trágicas e estúpidas pesavam nos seus ombros, sentia um fardo a enrijecer-lhe as costas, um fardo do qual jamais poderia se livrar. Esse pensamento fez com que se sentisse mais velho e teve vontade de chorar como uma criança.

Recordou-se do pai, já falecido, e de uma conversa que tivera com ele ainda quando adolescente, uma época em que sentia uma inabalável certeza de que seria rico, famoso, um vencedor custasse o que custasse, para não passar pelos apuros financeiros habituais na vida do seu pai, um abnegado professor de filosofia para quem o dinheiro não tinha importância alguma. O pai sempre encarava com naturalidade e irritante bom humor as pressões dos senhorios pelo aluguel atrasado, não se aborrecia com a mesa regrada e fazia troça das diversas carências materiais que a família suportava, como se fossem algo inevitável. Discordava do pai e jurara para si mesmo que, quando adulto, jamais seria inquilino de alguém, pelo contrário, tinha certeza de que estaria na posição de senhorio, seria rico e nunca passaria por privação de qualquer natureza. A imagem sorridente do pai encheu sua memória e sentiu saudades dele como nunca acontecera antes, até da sua ingenuidade e invariável boa fé diante dos outros, atitudes que ele jamais adotara na sua vida por temor de que acontecesse com ele os mesmos reveses que o pai sofrera por acreditar demasiadamente nos bons sentimentos das pessoas. Lembrou-se da vez em que chegara irritado da escola, tinha sido ridicularizado pelos colegas que haviam implicado com o seu sobrenome “engraçado e estranho”. “Alvedrio, Alvedrio, cara de pavio, de pavio”, era a cantilena diária da qual não conseguia se safar, mais bravo ficava, mais o atentavam. Questionou o pai sobre o motivo de lhe ter colocado um sobrenome tão esquisito, nem era o sobrenome da família, nunca ouvira aquele sobrenome nem na família do pai nem na família da mãe, enfim, só lhe trazia desconforto e constrangimentos. Ele calmamente lhe respondera que “mais importante que a tradição do sobrenome era o seu significado. Alvedrio significava vontade própria, livre-arbítrio, a faculdade que Deus nos deu para fazer o que quiser das nossas vidas e colher os frutos ou as ervas daninhas que nossas ações semearem”. Recordou-se da raiva que sentiu na ocasião, não entendera nada e atribuíra a atitude do pai a mais uma das suas esquisitices. Agora lhe ocorrera que os seus sonhos com as mortes poderiam ser uma mensagem que o pai novamente lhe enviava de onde quer que estivesse, talvez querendo lhe dizer que naquelas mortes ele, Ivan Alvedrio, tinha o seu quinhão de responsabilidade.

Estava mudado, sentia-se inquieto, concluía que a sua riqueza fora construída mediante trabalho honesto, mas jamais refletira sobre as conseqüências da sua atividade, nunca se sentira culpado, achava sempre que a responsabilidade era somente de quem fazia uso da arma, lavara sempre suas mãos. Percebia agora que a sua função era ceifar vidas humanas, da sua forja saíam os instrumentos da morte dos quais os assassinos se serviam e esse pensamento o repugnou. O passado não tinha volta, o que estava feito, estava. Mas sentia no seu íntimo que de forma alguma poderia continuar sua vida como se nada tivesse acontecido, continuar com os seus negócios, suas armas brotando diariamente aos bilhões em todo o mundo, as suas fábricas como oficinas macabras das quais a morte se servia para viabilizar sua obra.

Tinha uma dívida com o destino, recebia essa mensagem clara que estava sedimentada em algum recanto do seu ser, nas profundezas da sua alma, não restava nenhuma dúvida de que a sua vida se sustentara até então sobre um pântano, uma areia movediça em que estava afundado até o pescoço. Precisava estabelecer novas bases para sua existência, começar a resgatar um débito que sabia imenso, logo ele, que jamais contraíra empréstimos de qualquer natureza.

Iniciou mentalmente um inventário dos seus bens, mas desistiu logo em seguida, era impossível catalogar na memória todo o seu império, que se multiplicava diariamente. O seu batalhão de procuradores cuidava de tudo de forma autônoma, de acordo com as mais respeitadas práticas empresariais. Sabia, no entanto, que a sua fortuna daria para sustentar várias gerações da sua família de maneira confortável e sem percalços materiais, e ocorreu-lhe de súbito que era uma idiotice preocupar-se com dinastias futuras que ainda seriam geradas e chamar para si a responsabilidade do seu sustento. No entanto, a sua família, esposa e filhos, eram sua preocupação inicial, sobre eles respingaria as conseqüências das ações que pretendia tomar. Pretendia resguardá-los ao máximo, mas sabia que era impossível preservá-los de sofrimentos e pressões.
Chamou a secretária e pediu que telefonasse ao advogado. Estava com fome e pediu um lanche, não iria almoçar em casa. Recostou-se na poltrona e ficou pensando no que fazer. Construíra sua vida como se constrói uma casa, com planejamento, suor no rosto e anos de sacrifícios, tornando-a maravilhosa por fora, como projetada desde o início. Depois de pronta, no entanto, descobrira que o alicerce estava podre, as fundações precárias obrigando-o a demoli-la tijolo por tijolo.

O advogado chegou e encontrou um Ivan Alvedrio refeito, cabelo penteado e rosto impassível, sem nada que denunciasse o abatimento e angústia de horas antes.

__ Senhor...? __ Questionou preocupado, sem entender novamente o motivo da sua presença ali, percebendo, entretanto, pelo ar grave do interlocutor a importância do assunto a ser tratado.
__ Olá, Aristides, sente-se. Escute, vou precisar de você integralmente de agora em diante e vou abrir meu coração sobre um assunto de extrema importância, que vai mudar significativamente a minha vida. Percebo agora que a minha confiança em você é desproporcional ao seu cargo na empresa, a sua fidelidade a mim durante todos esses anos nunca foi devidamente recompensada, mais um de meus erros...
__ Não diga isso, doutor Ivan. Sustentei minha família, eduquei meus filhos à custa da CBTA. Sinto-me recompensado.
__ Bem, o que importa é que esse erro eu ainda tenho como reparar. Mas no momento eu peço que preste bastante atenção no que vou lhe contar. Será a primeira pessoa a saber e depois, apenas minha mulher e meus filhos tomarão conhecimento. Já lhe contei sobre o meu medo de morrer por causa desse sangramento, mas, como você vê, tirando essa doença, minha saúde está excelente...

Ivan Alvedrio continuou o relato sem esconder os pormenores, uma confissão para si mesmo, sentindo-se estranho, como se contasse a história de outra pessoa. Enquanto narrava, percebeu novamente que a atadura estava encharcada de sangue e, sem interromper a narrativa que absorvia a atenção do advogado, abriu a gaveta e pegou uma atadura limpa, fazendo a troca com admirável destreza que a repetição ao longo dos anos lhe proporcionara.

Terminou a narrativa suado, com os olhos marejados e um fio de voz. O advogado estava boquiaberto, remexendo-se na cadeira, sem saber o que dizer. Ivan Alvedrio recuperou a voz e quebrou o incômodo silêncio com uma tosse e um pigarro da garganta.

__ É uma história impressionante, doutor Ivan, jamais ouvi algo parecido.
__ Pois é, meu caro. Se não fosse comigo nem eu mesmo acreditaria. Mas é a pura verdade, tenho a maioria desses números anotados. __ Pegou o bloco de anotações e mostrou ao advogado __ Tenho certeza de que qualquer número desses que eu pesquisar, vai me trazer uma história de morte violenta.
__ O que o senhor pretende fazer?
__ Bem, muita coisa. Segure-se na cadeira para não cair de espanto. Mas, desde já, afirmo-lhe que não há força neste mundo capaz de me demover dessa idéia...
__ ?
__ Pretendo fechar a CBTA!
__ Como é, doutor Ivan? __ Questionou, estupefato, duvidando dos seus ouvidos.
__ É isso mesmo, Aristides, o que você ouviu. Vou fechar a CBTA.
__ Isso é impossível, senhor. Traria conseqüências terríveis, ações judiciais, prejuízos...
__ Por isso preciso de você. Sei que é uma tarefa árdua, provavelmente mais ousada do que foi a criação da CBTA ao longo dos anos. Mas estou pronto para assumir as conseqüências...
__ Isso envolverá somas de bilhões de dólares, prejuízos para os acionistas, desemprego, as bolsas de valores de todo o mundo serão afetadas... O senhor sabe que pode até ser preso... Por que não vendê-la em vez de fechá-la?
__ Não, não...Outro continuaria a obra macabra que comecei. Este mal tem que ser estancado de vez, é a única chance que tenho de amortizar esse débito com a minha consciência. Vou transferir para minha esposa e meus filhos alguns bens que garantam para eles uma vida digna e tranqüila, sem sobressaltos. O resto servirá para bancar as despesas, as ações judiciais e o que for possível minimizar de perdas a terceiros.
__ Será uma grande batalha, Dr. Ivan...
__ Eu sei, Aristides, a maior da minha vida.
__ Por onde eu começo?
__ Providencie uma procuração para eu lhe passar plenos poderes. Depois me traga uma relação dos meus bens pessoais para que eu lhe indique quais devem ser transferidos para minha família. Em seguida reúna a diretoria executiva e ordene a paralisação da produção na matriz e em todas as filiais internacionais. Eu estarei resolvendo outros assuntos urgentes, mas me encontro com você depois.

Esperou que a sala ficasse vazia novamente e voltou aos seus pensamentos. Esticou-se na cadeira, cruzou os braços, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, parecendo tirar um cochilo. Ficou assim por alguns minutos e depois se levantou, sacudindo a cabeça veementemente, tentando afastar de si algum pensamento indesejado.

Pegou um táxi e deu o endereço da casa onde estivera à procura do jovem desempregado, dono da arma cujo número de série estivera no seu mais recente sonho e desencadeara os últimos acontecimentos. Não conseguiu esconder a impaciência diante dos sinais fechados e da lerdeza do tráfego. Mal esperou que o carro estacionasse em frente à velha casa e saltou, murmurando algo que o motorista entendeu como ordem para aguardar.

Esticou o pescoço por cima do portão enferrujado e percebeu através da janela os três jovens em volta da mesa, jogando baralho e tomando cerveja. Ficou sem saber o que fazer, então bateu palmas como fizera da outra vez. Os jovens pararam de tagarelar e levantaram-se de um salto, como se temessem algo. O mais alto abriu a porta e aproximou-se com a expressão tensa, cara de poucos amigos.

O rosto do rapaz provocou-lhe calafrios, a face sisuda e fria era exatamente a mesma face do jovem carrasco que lhe enfiara corpo adentro os projéteis calibre vinte e dois que terminavam com a sua vida no pior pesadelo que tivera entre tantos outros. A visão do algoz fez as suas pernas fraquejarem, precisou agarrar-se no portão até que a vertigem passasse.

__O que você quer?
__ Falar com o dono da casa, chamado Davi...
__ Sou eu. O que quer falar?
__ Venho indicado pelo dono da padaria, Sr. Gregório. Sou colecionador de armas, você tem uma que me interessa...
__ Não tenho arma nenhuma...
__ Não se preocupe, não sou da polícia. Pago bem...
Tirou um maço de notas e deixou-as cair do lado de dentro do portão, aos pés do rapaz. Ele agachou-se e recolheu nota por nota, encarando de vez em quando o visitante, com o cenho franzido e o olhar desconfiado.
__ Bem, tenho apenas um pequeno revólver que era do meu pai, não é grande coisa.
__ É este mesmo que me interessa...Foi um dos primeiros que fabriquei.
__ O senhor é o barão dono da fábrica?
__ Dono da fábrica sim, mas o barão é por sua conta...

A identificação do interlocutor tranqüilizou o rapaz, que finalmente abriu o portão e cedeu passagem ao visitante. Os outros jovens tinham acompanhado o diálogo alguns passos atrás, protegendo a retaguarda do dono da casa. Com o desfecho da cena relaxaram os músculos e passaram a encarar o visitante com mais curiosidade que temor.

O jovem desapareceu dentro da casa e voltou com a pequena arma nas mãos. Beijou-lhe o cano, entregou-a vagarosamente e com ar solene, como se estivesse desfazendo-se de uma jóia. Ivan Alvedrio recebeu-a com mãos trêmulas, alisou com a ponta do dedo o número de série, 43477.

Enfiou-a no bolso do paletó e procurou controlar a emoção.

__ Você tem emprego?
__ Não. _ Respondeu o jovem, surpreso com a pergunta.
__ Quer trabalhar?
__ Quero, mas não sei fazer muita coisa.
__ Tem preguiça de estudar e aprender?
__ Não! _ Respondeu, ressabiado.
__ Então tome este cartão. Procure-me na semana que vem, ou ao meu advogado, caso não consiga falar comigo. O nome e o telefone dele está no verso, fale o seu nome e ele entenderá. Creio que posso lhe oferecer um emprego e a oportunidade de terminar os estudos. E também a seus amigos, caso queiram. Abraçou inesperadamente o jovem e saiu sem falar nada, nem olhar para trás.

Entrou no táxi e ordenou ao motorista que o levasse de volta para a empresa, assinaria os documentos que o advogado havia preparado e depois iria para casa. No trajeto, ia acariciando a arma no bolso do paletó, girava o tambor vazio com a palma da mão e olhava seguidas vezes para o cano de onde saíra os clarões alaranjados que tanta dor lhe provocaram no seu sonho mais real.

Ivan Alvedrio trancou-se no escritório da sua casa enquanto pensava na melhor maneira de contar aos familiares a sua decisão. A mulher e os filhos já o aguardavam, debatendo entre si os possíveis motivos da convocação que os obrigara a abandonar às pressas os afazeres e a escola. Temiam receber a notícia de que a doença do pai finalmente chegara à fase terminal e sua morte estava próxima, embora em diversas ocasiões os médicos houvessem decretado aos sussurros para a esposa e o filho mais velho o fim iminente do paciente, vaticínio que o passar dos anos se encarregara de desmentir. Nas suas conjecturas só conseguiam atinar com essa possibilidade, ouvir a dura notícia agora pela boca do pai, algo como “desta vez não tem jeito, acabou mesmo, procurem ser fortes” etc, etc, etc. Talvez esse agravamento da doença fosse a explicação para o comportamento estranho do pai nos últimos dias, o semblante contraído, o ar distante, o mutismo incomum durante as refeições, parecendo ter um grande problema para resolver. Só podia ser isso, concordaram entre si.

A porta do escritório se abriu e Ivan Alvedrio pediu que entrassem e se acomodassem. Fazia isso com ar grave e solene, aumentando a ansiedade dos familiares.

__ Nossa, papai, você está nos preocupando!
__ Fique tranqüila, minha filha, estou bem de saúde.

Abriu a maleta em cima da mesa, pegou a pequena arma calibre vinte e dois, o bloco de anotações onde listara os algarismos e em seguida repetiu detalhadamente a mesma história que contara ao advogado. Depois passou para a mulher os documentos dos bens que transferira para ela e os filhos, explicando com voz pausada a decisão que tomara. Calou-se, baixou a cabeça humildemente, deixando as lágrimas molharem o tampo da mesa enquanto tentava preparar-se emocionalmente para os questionamentos e com certeza as recriminações que ouviria da família.

Estranhamente, ninguém falou nada. Levantou a cabeça e viu que todos estavam cabisbaixos, chorando como ele, em silêncio. A filha levantou-se e o envolveu nos braços, depois a esposa e os outros dois filhos se achegaram e também o envolveram num forte abraço. Ninguém fez perguntas ou pediu esclarecimentos de qualquer natureza, apenas ficaram em silêncio por alguns instantes, todos juntos numa solidária comoção. Enquanto saíam da sala, Ivan Alvedrio observava-os com ternura, invadido por um conforto interior. Reconheceu que o seu momento de fraqueza e vulnerabilidade contribuíra para aparar algumas arestas e barreiras erguidas pelo seu comportamento auto-suficiente e distante ao longo dos anos. Sentiu um grande alívio com a reação da família, imaginara um grande conflito familiar e essa era a situação que mais temera enfrentar.

Mandou preparar o avião para um vôo urgente até a Austrália. Lá, iniciaria de fato a parte mais difícil da sua batalha, o convencimento de antigos adversários que agora queria trazer para junto de si.
Enquanto cruzava o oceano, pensava nos próximos passos do novo desafio que se impusera. Solitário nos aposentos cujo requinte compartilhara muitas vezes com altos executivos e autoridades de vários países, não se ocupava agora das cifras, das datas de entrega, do orgulho em mostrar ao interlocutor os armamentos de última geração desenvolvidos pela CBTA que, se adquiridos, poderiam impor a derrota aos inimigos. O júbilo que sentia ao fechar um grande negócio, ganhar uma concorrência internacional, ou criar uma nova arma e se manter na vanguarda, cedera lugar a um vazio existencial.Todos esses pequenos prazeres haviam se desintegrado da sua razão, tornando-se carentes de sentido e motivação. Sabia que se tentasse retornar aos antigos hábitos, às antigas atividades, essas situações agora se tornariam fontes de angústia e esgotamento, motivos de novos achaques para sua consciência. A mudança não tinha mais volta, ganhara um aspecto de “missão a cumprir”, só restava seguir em frente e enfrentar com resignação as provações e dores que o aguardavam. Ainda assim, seriam mais amenas que insistir numa vida carente de sentido e repleta de pesadelos que o seu interior, a sua alma, não possuíam mais estrutura para suportar.

Do aeroporto de Sydney foi direto para o escritório da sua empresa no centro da cidade. Ao descer do táxi, viu a legião de repórteres aglomerados na entrada do edifício, que estava de portas fechadas. Respirou fundo e caminhou resoluto em direção à entrada, enfrentando o assédio, impassível. Manteve-se sereno diante do frenesi, da balbúrdia de gritos, microfones e flashes, abrindo caminho com os cotovelos até chegar diante dos degraus. Virou-se calmamente e explicou que “a empresa não estava falida como pensavam. Apenas passaria por uma grande mudança e todos saberiam dos detalhes daí a dois dias por meio da entrevista coletiva que concederia na sede da empresa em Belo Horizonte, Brasil”.

Conseguiu entrar no prédio, deixando a confusão para trás. Precisou acalmar também os empregados, que o olhavam atônitos e ansiosos. Disse que não se preocupassem, saberiam dos detalhes sobre a mudança nos rumos da empresa muito brevemente e que os seus empregos, assim como os das demais filiais não corriam risco. Depois, pediu à secretária que ligasse para o diretor da ONG com quem digladiara dias antes sobre o projeto de desarmamento e de cuja contenda saíra vencedor.

Percebeu a voz ressentida e desconfiada do outro lado da linha, mas que deixava transparecer uma pitada de curiosidade. Pediu para ser recebido na sede da Organização pacifista, se possível de imediato, iria sozinho. A voz do outro lado emudeceu por alguns instantes, depois aquiesceu, informando que estaria aguardando.

Ivan Alvedrio lavou o rosto, trocou a atadura, penteou os cabelos e suspirou na frente do espelho. “Pronto, começou”. Estava dada a largada para uma nova fase de desafios na sua vida. Precisava ter sorte, mas confiava na sua veia empreendedora, esculpida ao longo dos anos pela experiência. Sabia que tinha boa capacidade de argumentação, de planejamento, e traquejo no trato com líderes políticos, mas compreendia que agora a sua principal força seria a sinceridade. Ia para o encontro com o espírito desarmado, sem cartas na manga. Dependia da ajuda de um ex-adversário para realizar uma grande façanha ética e humanitária.

O porteiro, o ascensorista e também a recepcionista da Organização encararam o inusitado visitante com indisfarçável curiosidade, sem esconder certa animosidade no semblante, querendo lembrá-lo de que ele era o inimigo. Claro, para aquela entidade, um fabricante de armas, mais do que um ministro da guerra ou um general, era considerado o inimigo número um, tudo de abominável que podia existir na face da Terra. Para o visitante, isso explicava os olhares hostis e significava que a notícia da sua visita à Organização já se espalhara.

Foi introduzido na sala de reuniões e verificou sem surpresa que toda a diretoria da ONG provavelmente estava presente. Contou doze pessoas, homens e mulheres cujos olhares inquisidores estampavam nos rostos a visível desconfiança que pesava sobre o visitante. Um senhor de cabelos grisalhos aparentando cerca de sessenta anos levantou-se e cumprimentou o visitante com um aperto de mão, anunciou-se como o presidente da organização e em seguida apresentou todos os demais. Ao final, pediu que se sentasse à cabeceira da mesa e explicasse a razão da visita.

Ivan Alvedrio sentou-se calmamente e, antes de começar a falar, lançou um olhar sobre a sua platéia. Por um momento, sentiu-se fraquejar, começava a sentir o quanto seria difícil convencer aquelas pessoas sobre a veracidade de suas palavras.

__ Bem, vim aqui oferecer a vocês as minhas ações da CBTA!

De volta para casa, fixava pela janela do avião o colchão de nuvens que se estendia a perder de vista. Relembrava os acontecimentos da reunião no dia anterior, que durara quinze horas ininterruptas. Mas no final, conseguira acertar todos os detalhes conforme planejara. Estava cansado, embora muito satisfeito. O início fora tortuoso, muito difícil. Houve até um momento em que temera ser expulso da sala sem que o deixassem falar. Foi quando começou a perceber a enorme ascendência do líder da organização, Sr. Albert, sobre os demais. Com sua voz pausada e a expressão descontraída, ele por diversas vezes conseguira acalmar os membros da sua organização até que as idéias ficassem bastante claras e todos percebessem a extensão da proposta e o que ela significava. Embora tivesse exercido profundamente a sua habilidade negocial, Ivan Alvedrio reconhecia que o presidente da ONG acabara sendo o grande artífice do acordo, o elemento chave cuja serenidade e inteligência permitira a celebração do contrato.

Uma etapa fora vencida. Os ex-adversários agora eram seus parceiros, conduziriam com ele os novos destinos da empresa multinacional. Doara a maior parte das suas ações para a Organização pacifista e proveria os recursos necessários para que a entidade adquirisse as demais ações dos acionistas minoritários pela cotação da semana anterior, antes de terem sofrido a considerável queda nos preços. Com a paralisação das atividades e a imprensa especulando sobre a possível falência da empresa, o valor das ações tinham despencado. Garantindo a compra pela cotação anterior, esperava minimizar o prejuízo de terceiros e as ações judiciais. Mas era otimista, esperava convencer alguns acionistas a manterem suas ações, pois estava convicto do acerto e da viabilidade do novo projeto.

Do aeroporto da Pampulha foi diretamente para a sede da sua fábrica. Vira na televisão o rebuliço entre os empregados, concentrados no pátio da empresa, alvoroçados com o seu fechamento e a disparidade das notícias veiculadas.

Desceu do táxi e enfrentou a multidão de rostos angustiados, muitos deles já conhecidos desde os primeiros tempos da CBTA. Ouviu-se um murmúrio generalizado, depois um silêncio respeitoso tomou conta do ambiente, com todas as atenções voltadas para o recém-chegado. O presidente do sindicato, que vociferava do alto de um caminhão, interrompeu o discurso e cedeu o microfone para o industrial.

Ivan Alvedrio subiu sem dificuldade em cima do palanque improvisado, agradeceu ao sindicalista com um sorriso e um aceno de cabeça e olhou para a multidão abaixo de si. Fez um minuto de silêncio, buscando inspiração para o que ia dizer e dirigiu-se ao aglomerado de operários ansiosos e tensos.
“Meus amigos, tenho algumas coisas importantes para dizer. O meu coração está em chamas, muitos de vocês pensarão que estou completamente louco. Não tenho dormido bem, não consigo me lembrar da última vez em que dormi uma noite completa, sem sobressaltos. Todas as vezes que vejo na televisão ou leio nos jornais a notícia de um assassinato ou de um combate, meu coração se apequena. Todos sabemos que a CBTA não tem concorrentes à altura, portanto, saem das nossas forjas, das nossas mãos, aquelas armas. Sinto-me co-responsável por essas mortes, estou infeliz.

Minha consciência, antes serena, agora está revolta e histérica, não tenho mais paz, não quero mais continuar sendo um mercador da morte. Convido vocês a compartilharem e construírem comigo uma nova atividade para esta empresa. Já temos um novo sócio, uma aguerrida organização que nos ajudará nessa tarefa. Mudaremos o nosso nome e a divisão nacional será remodelada para produzir máquinas agrícolas e tecnologia no ramo de alimentos. A divisão internacional produzirá biotecnologia, principalmente medicamentos e vacinas. Todos vocês serão treinados o tempo que for necessário e terão seus empregos garantidos.”

Entregou o microfone ao estático sindicalista, desceu do caminhão e caminhou na direção do seu escritório por entre a massa de operários atônitos. Ficara sem voz e estava extenuado, as energias consumidas pela emoção e pelo discurso. Mal entrou na sala, o advogado foi ao seu encontro.

__ Como está, Dr. Ivan? __ Perguntou, preocupado com o ar abatido do patrão.
__ Estou bem, Aristides. Apenas cansado.
__ A polícia já está aí, aguardando para levá-lo. Estão dizendo que o senhor está manipulando o mercado de ações e um juiz expediu o mandado. Como eu disse, a nossa batalha será grande.
__ Eu já esperava por isso. Peça que esperem só mais um momento, vou trocar minha atadura.

Entrou no banheiro e se olhou no espelho. Estava com olheiras, os cabelos desarrumados e a barba por fazer. Contudo, sentia-se bem, um sentimento diferente, pela primeira vez na vida o coração estava em perfeita sintonia com a mente, com a razão. Balançou a cabeça negativamente em sinal de desaprovação para seus pensamentos, estava fantasiando demais, concluiu.

Abriu a gaveta do armário, pegou uma atadura limpa e desenrolou mecanicamente a outra que cobria sua mão, deixando-a cair no cesto de lixo. Quando começou a recolocar a nova bandagem, interrompeu abruptamente o gesto e olhou surpreso para a palma da mão, a ferida aberta desaparecera. No seu lugar havia uma grande cicatriz avermelhada.